O mundo está repleto de deuses! (por uma geografia selvagem) 🌼🐗

 A coluna "nossa geografia humanista" retorna em 2021 com um trabalho inadiável. 

A dissertação "O mundo está repleto de deuses: sacralização da natureza e conservação da vida" da mestra Vanessa Araújo! 💚

Para se entregar a essa leitura, é preciso estar atenta. É uma denúncia que destila a necessária raiva contra os processos que tem nos colonizado e banalizado, passando pelo cristianismo, a ciência moderna europeia e, claro, o capitalismo. Não se trata de palavras conjugadas para soar bonitas. Elas são enfretamento, conexão com algo de profundo, um ataque de garra no âmago - entende a crueza e a pertinência da terra que devora os seres, ao passo que combate a banalidade a que nos submeteu os processos de colonialidade e especismo científico cristão. Exorta: o primeiro passo para a destruição do nosso mundo, das pessoas animais, pessoas vegetais e pessoas minerais, foi a dessacralização operada pela cristianismo, levado a cabo pela ciência moderna europeia e incutida em nós todos pela colonialidade.

Embora seja forte na denúncia, Vanessa também evidencia as resistências que sobrevivem no combate a banalidade na qual fomos sujeitos e construídos - resistências em ações de enfrentamento mas também de pensamento que desponta como cura e terra nutrida pra novas formas de vida. Escreve com Vandana Shiva, Gary Snyder, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Clarissa Pinkola Estés, Stefano Mancuso, entre outros/as.


Ancestralidade telúrica, memória da terra e memória biocultural: hidrografias interseccionais. Fonte: Pintura em aquarela elaborada pela autora, 2020. (ARAUJO, 2021, p. 168)

Confira abaixo um trecho desse trabalho

 (ARAUJO, 2021, p. 23-28)


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Enquanto a geografia me apresentava uma Terra biodiversa e interligada, também denunciava a inconsequência humana e sua ameaça a esse pequeno geoide lotado de vida – o único no universo conhecido. Ao mesmo tempo, convivia com a transformação ou destruição dos meus lugares sagrados: o monte, em meados de 2016, foi desmatado e loteado para dar lugar a um condomínio. Meu quintal deixou de existir quando nos mudamos e o novo morador tampou-o por completo com concreto – disse que planta demais dá bicho. Uma coisa ele estava certo: sim! Onde há planta há bicho, onde há planta há vida, onde há vida há mais e mais vida.

Todos os discursos por trás dessas práticas indicavam uma profunda separação humano-natureza. Acontece que não é preciso mais do que uma árvore cortada para despertar o sofrimento no coração daquele que, profundamente, ama o mundo. Tolkien (1892-1973), autor de O Senhor dos Anéis (1954) e O Hobbit (1937), admite ter sido a morte de um álamo a inspiração para um de seus livros, Árvore e Folha (1964). Explica:

Foi um pé de álamo com grandes galhos que eu conseguia enxergar mesmo deitado na cama. Foi subitamente podado e mutilado pelo proprietário, não sei por quê. Agora foi derrubado, uma punição no mínimo bárbara por quaisquer crimes de que possa ter sido acusado, como ser grande e estar vivo. Não acho que tivesse algum amigo, ou alguém que lamentasse sua ausência, exceto por mim e um par de corujas [1]

Disso tudo, vi brotar um amor ardente pela Terraacompanhado do desejo feroz de protegê-la a qualquer custo. Estava tomada, definitivamente comprometida com o Mundo. Fundíamos mais e mais na mesma medida em que enxurradas de perguntas tomavam minha mente e minha inquietude só crescia. No trabalho de conclusão de curso (TCC), escolhi falar sobre canalização e ocultação de rios urbanos sob o ponto de vista do próprio rio, no caso, o rio Betim – afluente do rio Paraopeba, bacia do rio São Francisco. A minha geografia intuitiva me levava a sentir profunda identificação psíquica com o ambienteO objetivo inicial era simplesmente chamar atenção para a pessoa do rio: quem é? O que representa? O que a forma como nos relacionamos com ele diz sobre nós mesmos? “Grito, aqui, o que a mudez induzida pelo asfalto sobreposto impede que os rios urbanos berrem” – escrevi na primeira versão da epígrafe. Eu quis dar voz ao rio, quis tomar suas dores e falar por ele. À medida que o trabalho era tecido, o tema e eu passávamos por metamorfoses constantes. Ao término, sentia cada vez mais entranhado na pele o sofrimento do rio, me perguntava: “porque sinto o que ele sente? Porque me incomoda tanto o que acontece com a natureza? O que nos une, ou então, somos a mesma coisa? Eu sou o rio?”. Essa última pergunta deu nome ao trabalho. Nele, entrei em profundo devaneio e angústia sobre o que seria a natureza, o humano e a relação entre ambos. Quais as relações entre crença e comportamento ambiental? Do rio, minha angústia abarcou as montanhas do Quadrilátero Ferrífero, o mar de Aral, as florestas do Congo, o pássaro laranja que canta baixinho dentro de uma gaiola na varanda do vizinho... Desculpe, preciso respirar por um minuto, posso?

Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo [...] Tenho que tomar conta de milhares de plantas e áEstou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo [...] Tenho que tomar conta de milhares de plantas e árvores e, sobretudo, da vitóriarégia. Ela está lá. E eu a olho. Tomo conta do menino que tem nove anos de idade e que está vestido de trapos e magérrimo [...] Você há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida. Tomei em criança conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um mínimo de folha [...]. É banal? Na pequena formiga cabe um mundo que me escapa se eu não tomar cuidado. (LISPECTOR, 1973, p. 71)

Voltei.

Com essas aflições em mente, concluí a graduação no mesmo ano em que me candidatei ao mestrado: 2017. Tateando no escuro, na carência de bibliografias na geografia que suprissem minhas aflições, me candidatei com o projeto de investigar as relações entre religião e crise ambiental. Desde o pré-projeto até agora, o tema e eu sofremos tantas metamorfoses que não seria possível enumerá-las. Na medida em que os conhecimentos e experiências adquiridos nas disciplinas e demais vivências se acumulavam, os objetivos, procedimentos e, principalmente, o título, sofriam radicais alterações. “De repente, percebe-se que o título já não é mais o mesmo. A transformação do título é parte do texto que vai se escrevendo e, a cada momento, se transformando em outro. Está aí o perigo pra quem deseja o conforto” [2]. Para além das metamorfoses textuais e pessoais, o incômodo permaneceu o mesmo: minha preocupação ambiental e o desejo em buscar os significados, as raízes e as curas para a trágica condição do mundo. O maior conflito consistiu em querer escrever na velocidade das montanhas – elas estão sempre a caminhar, mas muito lentamente – enquanto o texto estava inserido na lógica dos homens. Ele tinha um prazo para nascer e, certo padrão corporal a seguir. Essa domesticação me paralisou por diversas vezes. Vi-me, por dias a fio, inerte, muda, chorosa, desesperada. Um dia, olhei-me no espelho e disse: “Se destruir minhas anotações de instantes, voltarei para o nada de onde tirei um tudo?” [3]. Quis desistir todos os dias desses dois anos e meio, mas se sobrevivi para te contar essa história significa que também escolhi continuar todos os dias. Eu me agarrei à beira do penhasco com a ponta dos dedos. O que me salvou foi dar liberdade ao texto, liberdade para que existisse de fato, autônomo, orgânico, vivo. Passei a tratar a escrita como ritual. Entendi que, se a escrita da natureza não é objetiva, a do meu organotexto também não seria.

O que me proponho a contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros e enlameados, apalpar o invisível na própria lama. De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu [...] E se for triste a minha narrativa? Depois na certa escreverei algo alegre, embora alegre por quê? [4]

Não estranhe meu jeito de conversar com meus avós-livros, se por vezes deixo-os falar em citação direta, indireta, centralizados, não-alinhados. É que eles tomam posse de mim sem que eu ao menos perceba. Fique tranquilo que você saberá exatamente quando serei eu a falar e quando serão eles: o tom muda, as aspas abraçam, o vento muda de direção e um corvo grasna ao longe.


Ritual da escrita. Fonte: Acervo pessoal, 2020. (ARAUJO, 2021, p. 26)

Não se assuste se o tom da minha fala mudar de timbre, é que são muitas vozes – animais, minerais, textuais, vegetais - dentro de mim e, todas querem falar, embora o assunto seja o mesmo: a Tragédia Ambiental. Os espíritos dos animais humanos e nãohumanos assassinados no passado e, agora mesmo; as almas das árvores, montanhas e rios violentados e/ou mortos; o grito abafado dos que permanecem vivos, mas presos em uma lógica perversa da qual parece impossível fugir. O que o discurso ambiental hegemônico chama de crise ecológica, um mestre querido me ensinou a chamar de Tragédia Ambiental. A palavra “crise” remete a um acontecimento transitório e casual. Enquanto “tragédia ambiental” designa um fenômeno anunciado e em curso. Em sua etimologia, “tragédia” remete, de fato, a um fim fatídico sobre o qual se tinha consciência prévia. Do Latim tragedia, a palavra significa “peça teatral ou poema com desenlace ordinariamente funesto”. Sendo que “funesto” significa aquilo que “evoca a morte, destruidor, agonizante, angustiante” [5]. Esse conceito lança luz sobre a urgência da situação. Tratar a tragédia ambiental a partir de ponto de vista técnico-físico ou políticosocial reverbera em discussões e proposições superficiais de um problema que é, em essência, profundo. Afinal, “o começo da possibilidade de assumirmos criadoramente a crise que vivemos reside na disposição de irmos à sua raiz e na renúncia à segurança do que cremos já saber” [6]. Parece haver dificuldades em enxergá-lo como problema filosófico, cultural e espiritual. Resistência em ir às raízes: as ideias que sustentam as práticas ambientais. Recuperar nosso lugar na Comunidade da Vida é uma questão de sobrevivência. Mais ainda: trata-se de despertar para a Biodiversidade do mundo e de reverencia-la. Não tem a ver com economizar ou conservar os “recursos naturais” para as gerações futuras, ou de aperfeiçoar técnicas para uso desses tais “recursos”, tem a ver com deixar de ver a terra como recurso. Trata-se de rememorar quem somos e nunca deixamos de ser nas profundezas do nosso DNA. É o que o geógrafo Narciso Barrera Bassols e o antropólogo Vitor Toledo, professores da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), chamaram de resgate da “Memória Biocultural” da espécie, conceito que será abordado no Canto do Lobo e que diz respeito ao combate a amnésia biocultural:

O primeiro sinal de esquecimento é o fato de os indivíduos modernos já não admitirem que são membros de apenas mais uma espécie biológica no planeta. Ignoram, portanto, que existiram e que existem outras formas de se relacionar com a natureza – ou com o que não é humano –, assim como há diversas maneiras de se organizar como coletivos sociais a partir de outros sistemas de valores, de outro ethosIgualmente desconhecem que as sociedades humanas conseguiram persistir ao longo do tempo ao estabelecer uma certa aliança com a natureza – ou, poderíamos dizer, com as naturezas –, através de um processo recíproco, de um fenômeno de coevolução [7]

Faz parte da amnésia a falsa sensação de que a condição funesta da Terra não nos diz respeito como espécie. Este texto quer provar o contrário, quer dizer em alto e bom som que a Tragédia Ambiental transpassa todos os corpos terrenos. Que ela não ocorre como a ideia cristã de “Além”, em um lugar abstrato e fictício. Está nos mínimos detalhes materiais do cotidiano, mas aí reside a complexidade: é um problema no mundo físico que reflete e refratas ideias e conceitos. Daí vem minha necessidade em praticar uma geografia liânica: as lianas e cipós são trepadeiras lenhosas que formam verdadeiro emaranhado nas florestas tropicais, por isso, fazer uma geografia liânica significa entregar-se ao encontro, ao entrelace com outros saberes. Assim, acamadas de pólen que foram minha história até aqui – as vivências na infância, os livros, as pessoas, os estudos – me levam ao principal desejo dessa aventura:

Compreender a Tragédia Ambiental a partir do diálogo entre geografia, ecologia e espiritualidade.

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[1] TOLKIEN, J.R.R. Árvore e folha. São Paulo: WMF Martins Fontes, [1964] 2013, p. 7

[2] HISSA, Cássio Eduardo Viana. Entrenotas: compreensões de pesquisa. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p. 27

[3] LISPECTOR, 1977, P. 87.

[4] Ibidem, p.23

[5] COELHO, F. Adolfo. Diccionario manual etymologico da lingua portugueza, Lisboa: Plantier Editor, 1890, p. 1174.

[6] UNGER, Nancy M. O encantamento do humano: ecologia e espiritualidade. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 36.

[7] TOLEDO & BARRERA-BASSOLS, 2015, p. 17.


Leia o trabalho completo aqui!

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