Tabuleiro, sexta-feira, outono de 2017

A crônica a seguir, é a terceira e ultima parte da sessão POÉTICAS DO SENTIR OU O CORPO EM MISTURA COM O RIO QUE SE ENGOLE.


Das palavras que restavam em minha boca, saudade. Último dia de caminhada, e na água que corre, a chuva descia fraca, mas fria, tomando meu corpo já preparado para descer o último percurso da serra. O Espinhaço em tormento. Me perdi na neblina densa, enquanto os chuviscos gelavam minha pele. Sem capa de chuva. Às vezes sem chão. Ao céu entregue.


Sobre pedras e chão enlameado teci minha caminhada. Escondendo da chuva que cai. Tinha medo e frio. As dores de dois dias de caminhada assombravam meus pés. E sem perceber, me pus a caminho. Seguindo. Encontrando. Não estava sozinho, ainda que o silêncio habitasse os corações dos que caminhavam comigo. Não estava sozinho. Corria as águas pelas pedras rígidas, descia chuva transformada em cascata. Em córrego. Em rio.
Sabe se lá se isso é coisa do destino. No findar da travessia, meu corpo insistia em vencer mais uma pedra no caminho. Em deixar marcas. Em se espraiar. Gritos sem voz, em minhas pegadas largadas pelo caminho. O deságue final? Rio chegando ao mar? Entrega? Ali perto canta forte a cachoeira dos meus sonhos. Tabuleiro! Ressoar alto do Ribeirão do Campo. Que entre calados percursos, gritava, bradava, em sua entrega ao despencar. Tabuleiro!
As vezes é difícil. Já no outro lado da Serra, o solo de campos rupestres avista as densas florestas atlânticas. Que escondia entre suas clareiras gentes, bichos, memórias, assombrações. Ainda era manhã quando descemos. A mata cantava como se acordando. Neblina ainda percorria entre suas aberturas. Outono. Relapsos de sonho e magia. A mata escura, os matos dentro pra onde meu corpo iria imbricar.

Meio do caminho a chuva cessou. E os córregos do caminho corriam, sem nenhum medo, rolando abaixo. Caindo. Cantando. Sons distantes que bradavam dentro. Da chuva o rolar na terra. Sobre os sonhos das águas, espraiar e penetrar. Ser um. Vida que vibra e ressoa. Mudança interna, prazer que aflora em matos, e em canelas e que velozmente despontam entre as pedras, solo vivo dos cantos das minas. 
Descia ainda grudado a língua o sabor do café com cravo de dona Maria coado pelo seu Zé. Doce sabor de lembrança fresca. Café pisado, café da serra, fruto do chão. Na fumaça do fogão a lenha meu corpo se envolvia.  O doce sabor que tocava meu corpo, e me dava segurança, força e saudade. Descer serra na chuva não é fácil, e nem santo tem costumado ajudar. Enquanto bebia, me perdia em falar e o sabor dissipou sem muitos encantamentos. A fala venceu. Mas no silêncio de minha caminhada, o que ainda restava nas papilas apontavam um simples canto de amor. Era o Espinhaço em minha boca. O Espinhaço engolido. Tabuleiro! Ali, vivo.
Entre caminhos cortados, rios corriam por todos os lados. E nesse imbricamento, foi se fazendo travessia em cada córrego cruzado. Água, que por essência é travessia. Transpassa, transgredi, transluz. Em sua trajetória o rio que da serra descia desaguava em cachoeira, em seu sentido ao mar. Pra deixar de ser rio? Pra mudar? Pra viver uma outra história? Acredito que fins e começos são apenas formalidades que tomam nossas vidas. O rio que corre de encontro ao mar traça ali uma nova travessia. No diálogo constante, pois atravessar é se por em encontro, se abrir, não se negar ao desafio de tocar o outro, e deixar, também, ser transfigurado pelo corpo encontrado. Alteridade!
O rio descia. E em seu caminho abria novos contos de vida. Alaga a terra pra brotar; planta e bicho faz florescer. Nesse caminho aberto, arrancava terras, contornava rochas, rochedos e pedregulhos. Invadia a atmosfera. Mas não passava sozinho. As folhas caiam e acompanhava seu percurso. A terra que é chão das gentes encharcou com suas tonalidades marrom, preto, amarelo. Sedimentos que seguiam seu curso. Raízes que invadiam seu leito. Pés cansados que descansavam na margem esquerda de sua corredeira. Ali, onde o rio toma o outro corpo. Terceira margem!

ϕ
Espinhaço, sonho és, tormento és.
Agulha da serra da escarpa afiada, trilha de tropeiros,
da pedra e da fortuna. [...]
Garimpeiras de teus ouros e diamantes, teus cerros e teus erros,
acertos, desacertos, pisamos teu chão, no frio das manhãs,
branca neblina a nos envolver, 
ardente o sol,
pés na crueza das pedras, na beleza das serras, enigmas de teus mistérios.
um morro... sempre um morro... subida sem fim - caminho sem fim.
De onde paramos já não começamos mais.
Estamos mais longe! Caminhando...
Diva Dorothy Carneiro

Os primeiros textos da sessão estão disponíveis em:


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