Santana do Riacho, quarta feira, outono de 2017
Esta é a primeira parte da sessão POÉTICAS DO SENTIR OU O CORPO EM MISTURA COM O RIO QUE SE ENGOLE, composta por três crônicas.
O sol estava forte, e a estrada nem sempre continha em sua volta árvores grandes para sombrear o caminho. A medida que avançava nos paços, e no chão cascalhento no qual pisavam meus pés, meu corpo começou a ser invadido por um calor intensificado pela subida, enquanto o suor adensava sobre minha pele, cobrindo a superfície já avermelhada pela radiação solar e pelo trabalho de minha estrutura física.
No meio do caminho, paramos em frente a um riacho que rolava sereno pela serra, rumando para o córrego do Riachinho, que cortava mais abaixo, logo no início da estrada. Seu correr despertava estalos entre a sequidão metálica dos sons da paisagem, estourando entre pedras que se amontoavam naturalmente ao longo de seu curso. Paramos para beber água, repor os cantis e as garrafas, muitas já vazias, descansar e aguardar os grupos que vinham atrás, em um passo mais vagaroso.
Meu cantil ainda tinha bastante água, mas resolvi larga-lo e encher minha caneca com um bocado da água daquele córrego, afinal, o que trazia comigo era água urbana, maculada por substâncias químicas, biológicas, e a agressividade humana de destruir até o que o alimenta. Entrei, enchi uma boa caneca numa bica que se formava entre as rochas, e bebi. Beber água é algo tão banal e corriqueiro, que muitas vezes faço sem compreender o corpo que estou ingerindo, e, outras tantas, até esqueço de o fazer.
A água era gelada e fresca. Enquanto entrava, não havia mais calor em meu corpo, nem cansaço ou aridez. Havia liberdade, pois engolia água que era rio, em pureza e essência, em voracidade de cortar a terra e alargar o chão, desafiar as espécies que margeiam seu curso, fundar reinos, estabelecer gerações no correr de sua vivacidade. Rio para o mar, ser para o ir.
Sob o substrato desafiador do Espinhaço, o singelo córrego ousava descer, e carregar aqueles que ousavam tocá-lo, atravessá-lo, que viviam à sua margem, ou adentravam seu curso buscando fluir com sua movente morfologia. A forma do rio revelada no fluído, na correnteza, variação singular das altitudes para as planícies, mudança de hábitos, de velocidade, de força. Mudança construída em um contato ferrenho, assíduo, corpo a corpo, onde a troca desenrola-se, costurando histórias singulares a cada fração de terra alagada por sua corrente, a cada folha que cai e se decompõe, a cada pé que pisa o curso e desafia a correnteza, que dobra e desvia, ou simplesmente penetra, tornando-se um, sendo.
Ao colher água do rio, parei para admirar os sinais que seu correr despertava, onde a travessia se fazia presente, a errância, a singularidade de atravessar as serras em busca de um pertencimento na terra que é movente, que é passagem. A água também corria por meu corpo e enquanto descia, contava histórias da profundidade daquela serra. Histórias reescritas em cada fração de chão tocado pelo fluir turbulento da água, caminhos de rio que se misturavam a cada corpo chegante em sua extensão volátil, assim como eu, que me abria ao encontro no gole, à mistura.
Chegado que sou do rio, sinto seu sabor que se metamorfoseia no curso, mas que explode em essência no trago que percorre minha garganta, que envolve meu corpo, e desperta-me em força, saciedade e coragem. Na boca sinto o mundo, a água movente desafiante, que dribla tantas estruturas previamente postas ou engendradas por sua presença. Na boca, a água desafia minha inércia de imobilidade diante do desafio, e, por meio de um desejo, alcança-me, internamente, na inteireza do meu ser, e então descubro os caminhos pelos quais percorreu.
Sutilizes agressivas compõem esse ser que continua a correr nos ermos do Espinhaço. Suas margens, hora espaças, hora comprimidas, descem alterando o fluxo e a turbidez da água, mais erodindo que depositando, repleta de partículas quase invisíveis, cuja fração minha boca não ousou medir. A presença desses corpos acentua o gosto salobro, uma vez que estava repleta de minerais que compunham a serra. A temperatura gelada, alcançada entre o fluxo de sua corrente, o substrato rochoso e o esconderijo gramíneo e arbustivo, bastante apertado, protegendo o rio de uma exposição direta ao sol. A viscosidade do líquido, leve, que vibrou em minha boca, inebriava com seu som enquanto tocava as rochas, invadia os corpos margeantes, e enchia as diversas canecas e garrafas socorridas por seu mover. Em uma canecada de água, engoli o rio inteiro.
Engoli também o cultivo das gentes que chegavam ao rio e deixava-o entornar em seus corpos. Povos do Espinhaço, de morada e caminhada. Que cultuam o rio, e fazem com que aquelas águas sejam as mais cristalinas da região. Que bebem, usam, cuidam, banham, respeitam e o sentem, mais que como um simples recurso, sentem na vibração da vida, na necessidade e no desejo. Será que engoli ali a Terra, na composição e cultivo de um corpo rebelde, transgressor, desobediente, volátil, mas que se envolve e revela-se nos contornos e cuidados que vão o tocando? No sabor do rio, que corre incansavelmente, me abro como corpo para travessia.
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