Lapinha-Tabuleiro, quinta feira, outono de 2017

Este texto faz parte da sessão POÉTICAS DO SENTIR OU O CORPO EM MISTURA COM O RIO QUE SE ENGOLE. 

No meio do céu o sol já marcava sua morada, agora já rumando para o poente. Ainda que o vento chiasse forte, atravessando meu corpo, a energia do sol atacava-me, arrancando suor e desgastando minha pele. A trilha aberta, agora com mais de um carreiro, marcava um terreno no qual a elevação aumentava gradativamente, um morro cujo o fim era possível ser visto, e lá no alto, estavam uma pequena construção e um curral. O alcance da paisagem que se espraia em vastidão, dada a limpeza de um chão em que crescia apenas uma pequena relva, era extremamente perturbador. Era preciso chegar no cume daquele morro, e ainda faltava bons bocados de passadas, e após uma refeição o corpo começava a pesar um pouco.

Havia enchido o cantil na última parada, nas águas do Parauninha, mas mesmo tendo andado apenas breves minutos, a água já estava terminando, restando pouco mais que alguns goles. Andar em bandos reclama partilha, ajuda, cooperação, o que fazia do cantil tão meu quanto daqueles que caminhavam comigo, cada um de nós uma providência para o outro. A necessidade do serviço, da disposição, ver o outro na precisão e na dificuldade, e manter o encontro cara a cara, travessias que se renovam a cada segundo. 
Avistei o desespero em minha pele: a falta de água! Água que é tão cara ao corpo, a saciedade e manutenção da atividade, que sustenta o gingado do corpo, o ritmo, e coragem, esquecida na abundância, lembrada constantemente na possibilidade da falta. Poderia contar com um gole de algum companheiro, mas quem garantiria que seria o suficiente? De fato, haviam diversas drenagens no caminho, mas a existência de pequenos cursos d’água é sempre conflituosa e imprevisível. Nas diferentes estações do ano, a correnteza aumenta e diminui, o que pode acarretar diversos fenômenos, como o próprio esvaziamento do fluxo, pequenos represamentos do fluxo d’água ou poças enlameadas.  
A mente vibra e a imaginação contorce, dando ao corpo a sede que não esperava, agindo sobre minha pele, contornando meus órgãos e atacando meus sentidos. A sede é mais grave que a fome, e a falta de comida pode ser aguentada por mais tempo que a falta de água, pois quando se está com sede, o primeiro clamor do corpo é por água, antes de qualquer outro líquido. Naquele instante meu corpo clamava pelo rio, e minha busca era por algo imprevisível, incerto, e cuja distância ou mensuração eu desconhecia. O cansaço agitava em uma intensidade maior, a visão embaçava, a pele extremamente sensível, e a boca começava a secar com um sabor amargo, o sabor da falta que trava qualquer outro.
Meus sentidos estavam falhando? A experiência espacial é fundada na abertura do corpo ao mundo, sendo o corpo possuidor de histórias, impressões, cicatrizes, distinções biológicas e psíquicas, além de se renovar enquanto estrutura, a cada instante, diante das tensões e processos que o atravessa. Portanto, o corpo não é inerte e imutável, não se trata, em sua liberdade, de uma estrutura tecida por padrões gerais, no qual podemos estipular falhas, acertos, e qualificar como melhor ou pior. Dessa forma, os sentidos nunca falham, e não há lugar para questionar a veracidade – ou valor – de uma experiência. 
Meu corpo caminhava alagado pela incerteza do rio, e pelo desejo fresco da água na boca, da língua molhada, garganta seca que deseja a umidade. Aos poucos começava a fluir rios por onde eu passava, e nada mais importava, nada mais me saciava, pois precisava um gole para recobrar a disposição e a coragem, para sanar a insegurança e o medo. Passei o mapear os vales a fim de encontrar um curso, agucei a audição, para ouvir o canto suave ou bruto de uma correnteza, para achar o rio e beber água. Me fechando aos outros em busca de uma única substância; me abrindo à água ao olhar para o possível esgotamento do meu corpo, sentindo-o, compreendendo-o, questionando-o, pois diante da contração máxima de meu organismo, nas dores da sede, paro e reparo em quem sou.
Venci o morro, e comecei a descer constantemente. Quando avistei matas de galeria, fui vibrando, aos poucos, esperança e vontade, estava perto do rio que desejava, e quanto mais gritava o desejo, mais queria apressar o meu corpo e pular no curso. O caminho incerto e irregular e a impossibilidade de avançar devido ao desconhecimento da trilha, faziam com que o rio que aparentemente estava perto se distanciasse ainda mais. A distância aumentou quando percebi que o possível curso d´água não existia, pois no meio da mata não passava rio algum, e se tratava de um capão que não consegui identificar. 
Retorno o caminho e recomeço a jornada. Mais adiante imbrico, junto aos outros, e um estreito corredor, cujo chão era de pedras quebradas e escorregadias, cercado por um desnível na topografia, e por densas árvores. A brisa começava a cortar e o barulho anuncia, era o rio que corria logo ali onde eu estava chegando, ao meu lado, a minha espera, o que já habitava minha imaginação passava a ressoar em meus ouvidos e na ponta da minha língua. Parei um pouco ao chegar no curso, e debrucei-me no lugar improvável, incerto, imprevisível, mas que agora era o único capaz de dar segurança ao meu corpo. Um lugar que fluía e atravessava a Serra, assim como eu. Agachei-me próximo a uns galhos mais firmes, e joguei alguns punhados na boca antes de começar a encher. Na língua o rio que derrama é ente louvado por um corpo totalmente aberto para essa potência, que se curva ao rio como quem encontra o tesouro aguardado, a salvação, na dobra e inclinação do tronco para colher do leito a ressignificação da caminhada. A língua alegra-se e, envolvida pelo frescor, balança, enquanto sistema digestório foi sentindo, parte a parte, na garganta ou no estômago, a vitalidade da água que é rio, na singularidade de um sabor costurado na entrega ao curso. Aos poucos ia sentido à vida avivada, o suspiro úmido que habitava no movimento do rio em seu curso, entre as pedras, entre as plantas, em meu corpo. Sentia o curso do rio enquanto terra árida e seca, que recobrava a vida, que brotava espécies, que levantava em força e sorriso. O cansaço e a sede se encontram com a energia e a saciedade. O rio na manifestação da essência da vida. A vida do Espinhaço que corre para os caminhos mais distantes e inimagináveis. 
Fotografia de Breno Ornellas S. Magalhães
 A primeira parte da sessão está disponível em: http://npgeoh.blogspot.com/2020/05/numa-quarta-feira-do-outono-de-2017.html

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