Um poema que chega forte ❤

Manaus - Fotografia de Alice Bessa / outubro de 2018

na coluna 'nossa geografia humanista' de hoje, ecoo uma troca, conversa dialogada em íntimo, mais que necessária. 
sinto a poeta falar.
sinto a poesia gritar.
adentro as imagens. as imagens cortam a pele, que refaz a mulher.

reinvenções necessárias para nos habitarmos do sangue que nos fez, hoje reprimido à custa de tanta violência. deixar essas conexões adentrarem a carne que somos, deixar a reinvenção de nós mesmos produzir uma nova forma de habitar: com respeito. esse respeito urgente, negro. 



Grito

Noémia de Sousa

ao irmão J.M. 

Neste anoitecer sangrento de Moçambique
chega-me, segura, a tua voz irmão, 
inchada pela distância e pela saudade...
Misturada com os cantos escravos dos negros
regressando do trabalho,
chega-me de longe a tua voz fraterna
nítida como a lua cheia no espaço,
trazendo-me a mensagem da tua palavra afiada de lutador,
a esperança sempre renovada
de teus olhos iluminados prometendo madrugadas maravilhosas
- ah irmão, quando, quando?
todo o teu rosto vibrando entusiasmos incontidos

Neste anoitecer tenebroso de Moçambique, 
com gemidos de vencidos ameaçando arrasar tudo, 
chega-me a tua voz brilhando no escuro, 
como a estrela d'alva da lenda...
E é estranho como o teu grito, aumentado
em vez de diminuído pela distância, 
é mais forte que as vozes submissas, 
como as esmaga e as afoga, 
como parece mesmo de ferro
quebrando as correntes que alastram cada vez mais...

Ah irmão, 
neste anoitecer decisivo e sinistro de Moçambique
não me abandones!
Manda-me sempre a tua voz de abraço
animando-me a lutar contra os bayetes amolecidos dos landins,
dia a dia mais numerosos...
Como outrora, ai ajuda-me a lutar irmão!
Que a minha alma é maré cheia de lágrimas recalcadas
desde que te arremessaram para a incerteza
do bojo negro dum navio fantasma...

E depois de teres dirigido meus olhos para incomparável beleza
das estrelas reais, uma a uma nascendo lá fora, 
na noite imensa da ansiedade,
- não quero mais a mentira nua das falsas missangas de cor
imitando astros com que me querem burlar os tiranos de olhar vesgo
e enormes mãos antropófagas gotejando sangue!

Gotejando o teu sangue ainda quente, irmão...

17/10/1949


* SOUSA, Noémia de. Sangue Negro - São Paulo: Editora Kapulana, 2016. (Série Vozes da África) / p. 101-102.



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