[GLOSSÁRIO] P de Política
POLÍTICA
Por Fernanda Cristina de Paula*
Nunca concordei.
Em tempos de Pandemia lemos ou ouvimos, com frequência, frases como: “É preciso não politizar o vírus” ou “Não podemos politizar a vacina” e eu nunca concordei. Mais do que isso: sempre estranhei, choquei. Finalmente, me perguntei: o que essas pessoas entendem por política?
E quando digo “essas pessoas” estou me referindo à sociedade civil, a cientistas, jornalistas, formadores de opinião, pessoas com cargos no sistema político que defenderam esses bordões. E fica a questão: o que essas pessoas concebem como política? A pergunta, obviamente, é mais um exercício de retórica, pois, desde a perspectiva a partir da qual viso o mundo, a forma como essas pessoas pensam o que é política já está errada.
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Hannah Arendt, no livro póstumo intitulado “O que é Política?” diz: “A política se baseia na pluralidade dos homens. [...] trata da convivência entre os diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças” (ARENDT, 2012, p. 21-22). Da colocação de Arendt (2012) é possível depreender que para a existência da política há duas condições e uma necessidade .
A primeira condição é de que somos diferentes entre nós; ainda que tenhamos, por exemplo, sido criados em um mesmo país, em uma mesma cultura ou, até mesmo, pela mesma família, apresentamos diferenças entre nós. Enfatizo: ainda que exista perspectivas, hábitos ou pontos de con-cordância (con- de juntos, lado a lado; -cordância de core, coração), as pessoas são plurais, são diferentes entre si.
A segunda condição é de que vivemos juntos. Con- vivemos. Conviver é partilhar o mesmo tempo, o mesmo espaço. Conviver é estar juntos, nesse lugar, nesse território, nesse canto, nesse país, nesse mundo. Vivemos em sociedade; a convivência é inerente as nossas vidas. Conviver é lidar com a existência e com a inevitável inerência de um Comum (isso mesmo, com letra maiúscula): uma dimensão coletiva, partilhada/vivida (não necessariamente da mesma forma) por nós.
Entre o fato de que somos plurais e o fato de que convivemos (juntos, nesse espaçotempo), surge uma necessidade: a de organizar o Comum. E é preciso atentar que esta organização do Comum, da convivência, nunca é sem debate, sem conversa, sem embate, sem exercício de poder (em suas múltiplas facetas): pois, somos plurais; temos diferentes formas de pensar, de agir, temos diferentes formas de entender, diferentes opiniões sobre nossa convivência. E essa organização do comum “em meio ao caos das diferenças” é que é política.
Logo, como poderia algo como uma Pandemia e uma via da saída da mesma, a vacina, não serem politizadas? Se uma sociedade não politiza aquilo que ameaça sua existência atual, se uma sociedade não politiza as formas de dirimir essa ameaça, significa que a sociedade não pensa, não reflete, não discute, não se apropria daquilo que lhe acontece. Em verdade, acredito que não há como uma pandemia não ser politizada. Uma sociedade que não politiza o que a ameaça só pode significar duas coisas: ou não pensa ou é governada por um tirano (que elimina qualquer principio coletivo de organização do Comum).
No que diz respeito a bordões como “é preciso não politizar a pandemia” penso que, nestes casos, o termo certo para o que as pessoas querem significar não seria “politizar” ou “politização”. O termo correto seria outro.
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A partir do que coloca Hannah Arendt não posso deixar de atentar: a política tem, necessariamente, uma dimensão geográfica, na medida em que ela brota, justamente, do fato de estarmos juntos numa porção de espaço. Se cada indivíduo estivesse vivendo sozinho, a quilômetros de distância de outro indivíduo… bem, não haveria necessidade de política.
Doreen Massey, no livro “Pelo espaço”, destaca a inerência da política ao lugar (pensado por ela enquanto eventualidade). É possível depreender da reflexão de Massey (2008) duas formas a partir das quais compreender a relação entre lugar e política.
A primeira abordagem diz respeito ao fato de que todo lugar tem, necessariamente, uma dimensão política. Isso porque todo lugar reúne pessoas com diferentes narrativa espaciais e questões sociais que vão, naquela porção de espaço, con-viver. A segunda abordagem concerne ao fato de que via lugar seria possível fazer política. Massey (2008) chama de política de lugar a busca explícita por configurá-lo em busca de um objetivo em específico; sendo que para a autora, o objetivo a ser alcançado para dirimir problemas sociais (vividos por minorias, por exemplo) seria o de realizar políticas de lugar com vistas a tornar este mais democrático.
Para mim, o que é interessante observar, também, é que ao viver os lugares nós incorporamos suas políticas e, em um movimento indissociável, desde nossos corpos nós fazemos, nós participamos, das políticas dos lugares – quer estejamos cônscios ou não, quer queiramos ou não.
A consideração do corpo enquanto indissociável do lugar e o papel do corpo-lugar enquanto via da política (DE PAULA, 2017), leva-me a colocar, também: para lidar com a pandemia do coronavírus não deveríamos estar pensando de forma mais sistemática e efetiva políticas de lugar e seus sentidos?
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O que as pessoas têm chamado de “politização da Pandemia, da vacina”, em verdade, deveria ser denominado de “partidarização da Pandemia, da vacina”; ou seja, quando clamam para “não politizar a vacina” querem dizer: não seja a favor da vacina em função do partido ao qual se simpatiza ou não. Então, sim, eu concordo que não devemos partidarizar, de forma rasa, a vacina ou a Pandemia. E, não, sigo não concordando com a expressão “politizar”, pois a política está aquém dos partidos, aquém do sistema político institucionalizado, aquém do poder do Estado.
A política está no cotidiano, nos lugares, nos encontros, na partilha do espaço, tempo, destino que se perfaz no dia-a-dia, no ser-com. E, aí, você poderia me perguntar: e o que pode esta política, esta da nossa convivência, contra a política feita lá, em Brasília? Por que olhar a política do cotidiano, dos lugares, da micro escala se, sempre, parece que é a política institucionalizada (do legislativo, do executivo) que dá a cartada final em todos os assuntos?
Bom, eu te diria que essa política que está aquém das instituições não é banal. Essa política efervesce no nosso dia-a-dia e esse efervescência não é nula: vimos nas últimas eleições de 2020 (municipais) mais mulheres trans, pessoas negras e indígenas sendo eleitos. E o que funda a existência em sociedade destas pessoas é, necessariamente, a injustiça cotidiana, estrutural, as políticas segregacionistas de lugar, a violência estrutural à quais seus corpos-lugares são submetidos (e de seus antepassados e de seus filhos). É a política da micro-escala que acende o peito desse perfil de eleitos que surgiu nas eleições municipais de 2020.
Ainda que o número de pessoas eleitas com determinados marcadores étnicos e/ou sociais (raça, gênero, sexualidade, etnia) esteja longe do que muitos de nós almejamos, já é um início de caminhada importante: os corpos dessas pessoas adentrando nos lugares “sagrados” de política institucionalizada é já uma forma de criar uma nova política dentro desses lugares e que, esperamos, vá reverberar, ferir (aos poucos, mas inexoravelmente) o sistema político tal como o conhecemos até hoje.
Referências
ARENDT, Hannah. O que é Política? Fragmentos das obras póstumas compilados por Ursula Ludz.(trad. Reinaldo Guarany). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
DE PAULA, Fernanda C. Resiliência encarnada do lugar: vivência do desmonte em Linha (Brasil) e Mourenx (França). Tese (Doutorado em Geografia). Campinas: Instituto de Geociências/ Universidade Estadual de Campinas, 2017. 157p.
MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. 312 p.
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