[GLOSSÁRIO] B de Buteco
BUTECO
por Ludmila Virgínia Pereira Gondim
Eu aprendi a gostar de futebol com o meu pai, e cerveja também. Eu aprendi a gostar de buteco com o meu pai, e que cerveja deve ser bebida em copo lagoinha, aquele tal de copo americano que aqui em Minas ganhou um nome mais simbólico, boêmio e afetivo. Eu aprendi que futebol e buteco, além do bom torresmo de tira-gosto, fazem parte desse ar boêmio que carrega a atmosfera de BH. Mas tem uma coisa que meu pai não me ensinou (inclusive, para ele é um desgosto) que mulher sozinha em buteco assistindo futebol incomoda o patriarcado.
O buteco é o templo sagrado do homem. Lá, ele xinga palavrões, fala da mulher dos outros, xinga jogadores, faz piadas de baixo calão, bebê sua cerveja e umas doses de cachaça, fuma um cigarro escondido da família, joga seu truco apostando dinheiro. No buteco, entre os parças, não há tempo para o julgamento, nesse lugar o homem transpira testosterona. Mas tudo fica mais tímido quando uma mulher ocupa esse lugar, é como se estivessem sendo roubados, a essência tosca do buteco se perde com a feminilidade da mulher. E como toda mulher tem que reivindicar seus lugares, eu fui e sou uma dessas nos butecos do baixo centro de BH.
Desde criança eu ia em buteco com o meu pai, mas só bebia um Baré e jogava um Cadilac Dinossauro. Como qualquer outra criança, não entendia a balbúrdia que se passava no ambiente. Na adolescência, já bastante apaixonada por futebol, acompanhava os jogos com o meu pai, no sofá da sala ou no bar, mas é isso, eu era uma adolescente protegida dos outros homens pela figura do meu pai. Ainda na adolescência, eu não problematizava ou reivindicava esse lugar como também podendo ser meu. Já adulta, um horizonte de universo se abriu para mim na Universidade. Eu me entendi mulher no mundo e que precisava incomodar o patriarcado com a minha presença. Quase que inconscientemente (mais movida pela paixão pelo futebol) me fiz presente nos Coqueiros da vida, uma região de butecos no centrão de BH. Toda quarta-feira, saia da UFMG e batia ponto no buteco às 21:30 para assistir pelo menos o primeiro tempo do jogo do meu time (morar na metropolitana, na periferia da periferia, não me permitia assistir o segundo tempo do jogo. Como toda mulher, prezo pela minha segurança. Andar na madrugada sozinha é zica). A pedida sempre era a promoção, 3 barrigudinhas por 10,00 e um espeto de coraçãozinho ou boi que era o que o meu dinheiro de universitária me permitia pagar. Época boa que ainda tinha bolsa de incentivo à pesquisa para graduandos. Há quem diga que não investia meu dinheiro na minha pesquisa. Calúnias! Ora veja, se eu não estudava a aura boemia para entender melhor sobre a categoria lugar?! Várias vezes, tirava meu bloco de anotações da bolsa e registrava movimentos e momentos.
O começo dessa minha vivência solo butequeira foi estranha e engraçada. Meu pai xingava quando me ouvia no telefone com a mamãe dizendo que iria assistir o jogo. Logo soltava que isso era coisa de mulher vulgar. Fazer o que? Era mesmo. Com o tempo, ele passou a achar normal e no outro dia sempre comentava os jogos comigo. Os garçons, meio tímidos, me passavam o cardápio e perguntavam se eu estava esperando por alguém. Com o tempo, se tornaram parças, me indicando cerveja artesanal (quando meu rico dinheirinho sobrava no final do mês) e vigiavam a minha bolsa para eu ir ao banheiro.
A maioria das mulheres estavam acompanhadas de outros homens e iam mais pela diversão do que para acompanhar o jogo. Muitas me olhavam curiosas e acredito que admiradas com a minha atenção voltada para o jogo. Infelizmente, nenhuma se atreveu a sentar comigo ou mesmo conversar na fila do banheiro. Da mesma forma e ainda bem, nenhum homem se atreveu a pedir lugar na minha mesa e nem a comemorar gol me abraçando. O máximo que eu conseguia perceber era um comentando com o outro que eu entendia de futebol por conseguir questionar os impedimentos. Quando um olhar ou sorrisinho mais malicioso cruzava o meu olhar, eu me defendia fechando o semblante, como toda mulher faz.
Muitas pessoas me perguntavam se a minha atitude não era muita ousadia e alguns amigos homens sempre se ofereciam como companhia, me indagando se eu me sentia à vontade sozinha. Na época, a resposta era padrão, me sentia de boas nessa situação e não me importava com os olhares e julgamentos de uma mulher sozinha numa mesa de bar.
Hoje, minha resposta talvez fosse mais estruturada. O ser humano é um bicho social, coletivo. O ser humano belorizontino é butequeiro e gosta de compartilhar a mesa do buteco com os amigos, mas nem todas as experiências precisam ser coletivas. A individualidade nos faz vivenciar as experiências de forma mais profunda, amplia o nosso horizonte de visão. Estar só no buteco me fez vivenciar e perceber a metrópole de outro ângulo. Nunca mais as ruas dos butecos do baixo centro foram só passagem. Hoje sei que as ruas são vivas, que há uma permanência de diferentes pessoas que as habitam na madrugada e durante o dia. Hoje sei enxergar para quem o buteco é vida e para quem é só um comércio.
Aliei o meu amor ao futebol e a cerveja à luta feminista. Dessa forma, me faço presente nos butecos da vida com o intuito de viver experiências que me apresentem as geografias dos corpos, dos lugares, os movimentos das ruas porque é essa atitude que me mantém atenta à mulher que sou. Mas cada mulher expressa o feminismo a sua maneira, seja através do corpo, da fala, da música, do futebol, o importante é estar presente em todos os lugares. Por que afinal, lugar de mulher é onde ela quiser. Se permita ousar!
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