O Rio sou eu?

Na coluna "nossa geografia humanista" de hoje, apresento o trabalho de conclusão de curso da nossa borboleta, a geógrafa Vanessa Dias de Araújo, denominado "O Rio sou eu?", apresentado ao  Departamento de Geografia da UFMG em 2017.

Esse trabalho apresenta um intenso processo de transformação, da cidade que come seus rios e os enterra, da mulher-borboleta que se avoa em outras poéticas, do saber que se faz corpo.

O Rio sou eu? - questão movente de uma pesquisa-árvore.


Fonte: ARAUJO, 2017.

Acompanhe aqui um trecho, bem inicial, desse trabalho.

O estudo que se segue é o porvir de dois incômodos: um de natureza visível e o outro de ordem abstrata. Falo de dois âmbitos da experimentação do mundo: o da matéria e o da imaginação. Essas duas feições, no entanto, se compõem, afinal o devaneio emana do real. Quanto à matéria: água, águas fugazes – rio; quanto à imaginação: simbolismo, poética da liquidez. Esses incômodos acometeram-me em função de uma imagem: meu rio natal, o que corta a paisagem da qual nasci, foi submetido ao processo de canalização e tamponamento de uma porção de seu trecho. Rio Betim. No momento da imagem senti que o corpo mutilado pela modernidade não era o dele, era, também, o meu.
Reconheço no rio um tipo de familiaridade sanguínea. Há nas águas que (es)correm uma certa melancolia semelhante ao canto existencial humano: diferente da terra e do fogo, a água parece viver em estado de busca. E o que é o Húmus se não um ser voltado à sedução do horizonte. “Navigare necesse, vivere non est necesse”.
Por essa familiaridade sanguínea, pergunto: o rio sou eu? Se o rio é natureza, sou natureza? Mas afinal, o que significa essa palavra-noção? A tríade contaminação/canalização/ocultação dos cursos d’água são ações no campo da matéria que refletem mudanças de significado no campo da imaginação? Há uma essência do rio.
O trabalho foi tecido, então, a partir dessa pergunta central [o rio sou eu?] e estruturado de acordo com as questões que se desdobraram a partir da experiência de proximidade com o rio. A primeira parte, águas ruidosas, compreende as cabeceiras da pesquisa, onde a água é barulhenta, juvenil.
Divide-se em dois momentos: o primeiro contextualiza a investigação a partir de suas indagações e motivações, bem como expõe a história da construção dinâmica (metodologia) da pesquisa a partir da fusão sujeito-objeto, eu-rio. No segundo momento me permito submergir na discussão com outros autores e autoras sobre minhas inquietudes acerca dos fundamentos filosóficos da problemática ambiental, tais como a dialética entre ideia de natureza e relações sociais e os princípios epistemológicos da crise ecológica. Busquei, neste tópico, compreender em que medida os discursos e significados envoltos na noção de natureza reverberam em nossas práticas espaciais.
A segunda parte leva o título de águas dormentes por se tratar do momento do texto em que as águas silenciadas do Rio Betim emitem seu grito mudo. Discorrerei sobre a experiência de ser-rio e os desdobramentos espaciais da discussão empreendida na primeira parte. Trata-se, portando, do estudo aprofundado do fenômeno que evocou esse trabalho: a condição atual do Rio Betim: em processo de canalização e ocultamento. Corpo que corre silencioso dentre avenidas, é diariamente absorto em esgoto doméstico e industrial, além de ser tratado com indiferença e apatia por quem habita e transita em suas margens. Com mais de 80% de sua bacia em área urbana, nasce no município mineiro de Contagem, atravessa o município de Betim e entrega suas águas na margem direita do Paraopeba; este as leva até a divisa dos municípios de Felixlândia e Pompéu onde encontra o São Francisco que só descansa quando morre no Atlântico e se torna mar.
A Terceira e última representa as águas senis, como as dos rios anastomosados: canal largo, repleto de barras arenosas, diversos caminhos, fluxo calmo e sábio. Esse momento final do texto é marcado por cada acontecimento dessa história, rico em sais minerais lixiviados dos regolitos da pesquisa, inclui as considerações da investigação, os devaneios, o retorno à dúvida, o anseio em imaginar outras geografias entre humano e terra, humano e água.

Comentários

~apreendências~ disse…
maravilhada com o texto da Vanessa Dias de Araújo!!!

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