A experiência do lugar em cartas

Na coluna "Nossa Geografia Humanista" de hoje, apresento mais um trabalho: a tese de doutorado escrita pelo geógrafo Ivo Venerotti, intitulada
Um gostinho do lugar em carta:

*Figura 17 – Carta 372 21/01/1952, na página 97 (VENEROTTI, 2017)

Um gostinho do que é esse trabalho (trecho retirado da tese com permissão do autor):

CARTA A C. ROY HARPER E EVELYN DOUGLASS HARPER


Rio de Janeiro, 21 dezembro de 2017.

Queridos Roy e Evelyn,



Peço licença para o tratamento próximo e informal. Peço também calma para entender como eu posso reunir tantas histórias sobre vocês. Tudo ficará claro adiante.

Deixe-me apresentar. Eu vivo naquela cidade onde vocês desembarcaram em 10 de setembro de 1925. Escrevo do Rio de Janeiro: noventa e dois anos nos separam.
Do porto a Cinelândia, vocês podem ter a impressão que muita coisa mudou. Mais prédios afogam o Centro do Rio, todavia o cenário resiste, aquele que pode ser visto do alto do Corcovado, hoje ornamentado com um dos símbolos mais conhecidos do Brasil em todo o mundo, o Cristo Redentor – desde 2007 uma das sete maravilhas do mundo moderno. 

Do topo do Pão de Açúcar, a comunhão do que a natureza proveu, com suas formas e intervenções humanas se apresenta: o motim de beleza ainda assola a cidade. Estou fazendo menção à poética passagem da carta escrita por Roy (não creio que se lembre, meu caro) em 19 de setembro de 1925. 
Cabe reproduzir esse trecho:  
"Agora, deixe-me dizer uma palavra de louvor para aquela vista. Eu estive no topo da Torre Eiffel e vi toda Paris sob meus pés, com o Rio Sena serpenteando pela cidade; eu vi Nova York do alto do edifício Woolworth, e Denver do alto da Fisher’s Tower; eu me fascinei pela cena que se estende do alto de algumas daquelas queridas e antigas montanhas Rocky, com os morros cobertos de neve, os rios sinuosos, os vales profundos e as planícies distantes. Mas jamais tinha visto tal panorama como o que se descortinava diante de nós do topo do Pao de Assucar. Eu acho que uma cidade pode ser encantadora, uma montanha pode ser inspiradora, e uma enseada pode ser adorável, mas quando se vê tudo isso em uma imagem, isso é imenso. Rio está aninhado entre os morros e se esparrama em uma dúzia de praias; suas diversas casas coloridas com suas coberturas vermelhas de telha sobem as vertentes montanhosas e estão por todo vale; adicione a isso as belezas de uma enseada que é literalmente cravejada por ilhas, não coisas planas, mas montanhas, morros acidentados, que se erguem para fora da água. Em outra direção, a vista estende-se sobre o Oceano Atlântico, onde uma vela ou um vapor é visto sulcando as ondas. À distância, do outro lado da baía, pode-se ver a extensão da costa com sua linha ondulada de picos e as nuvens mais bonitas pairando sobre elas. Cidade, montanhas, céu, nuvens, oceano, baía tudo em um grande motim de beleza."
Roy, você se lembrava de escrever uma verdadeira poesia em homenagem à cidade?

Ao transitar nos dias atuais pelo centro do Rio, o olhar atento perceberá algumas velhas conhecidas construções, com outros usos. Os cinemas se foram das ruas e praças, e a população vive enfurnada em uma criação tipicamente americana: os shopping centers. Certos hábitos persistem. O trânsito caótico, os sons urbanos cada vez mais ensurdecedores! Os bondes se foram, são peças de museu. Faz algum tempo que deixaram de ser o principal meio de locomoção na cidade. Hoje, um bonde moderno, chamado “veículo leve sob trilhos”, passeia por antigos trajetos, conectando alguns pontos do centro da cidade e dos bairros da zona portuária. Toda a cidade continua um misto, como vocês chamaram, do primitivo com o moderno – a desigualdade social é aterradora. Mulheres e homens negros seguem descalços pela cidade, enquanto homens brancos engravatados se apresentam com o verdadeiro direito de ir e vir.
Neste momento, a universidade onde estudo, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, resiste, sem verbas, e seus bravos professores, servidores e pesquisadores trabalham sem pagamento, lutando pelo direito a universidade pública, gratuita e de qualidade. No entanto, um moderno estádio de futebol nos encara do outro lado da rua, lembrando que mais de um bilhão foram gastos em sua construção.
Vejam só: vocês dois vieram propagar o evangelho no Brasil, em missão pela Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América. Naquela época, eram minoria. Hoje, o Rio é um estado com contingente significativo de população evangélica e cada vez mais pessoas professam a mesma fé de vocês em diversas denominações pelo país. Mas suspeito que não estariam assim tão contentes com essa informação, dadas algumas ramificações que são propagadas por aqui. Críticos que eram da superstição, não sei se vocês veriam uma distinção clara nos dias atuais entre ela e do que vocês vivem e entendem como fé.
Ora, devem estar se perguntando como cheguei até vocês dois. Imagino que queiram saber, afinal, receber uma carta como essa, sabendo tanta coisa, só poderia ser algo escrito por um espião! Bem, os conheci por intermédio do neto de vocês, Steven, meu amigo valioso. Acreditam que ele também tem a nacionalidade brasileira? Até pouco tempo viveu aqui, na Cidade Maravilhosa. 
Como é fascinante a ligação dos Harper com o Brasil! Começou com vocês até chegar ao seu neto brasileiro-americano, passando pelo seu filho mais novo Charles Jr. – Chuck para os íntimos – sem esquecer do pequeno Gabriel Charles, o bisneto brasileiro, filho de Steven e sua esposa Adriana Salomão.
Especificamente sobre Chuck, não estou falando somente do fato dele ter nascido na cidade de São Paulo, e ter crescido, assim como Annabel, em Jandira. Faço menção à militância de Chuck através da Cátedra de Direitos Humanos do Conselho Mundial de Igrejas. Muitos exilados políticos a partir dos anos 1960 abrigaram-se em sua residência funcional em Genebra. Durante esse período da ditadura civil-militar brasileira, inclusive, documentos microfilmados de comprovação da prática de tortura e assassinato de militantes políticos encontraram proteção na mesma casa, enviados pelo amigo de infância, o pastor e pesquisador Jaime Wright. Esse material compõe fundo do esforço “Brasil: Nunca Mais” e parte dele originou o livro do mesmo nome, em busca de justiça para os presos e mortos políticos do regime.
Mas ainda não respondi como essas cartas chegaram a mim. Foi assim: há quatro anos atrás, Steven me apresentou algumas poucas correspondências, dizendo ser de autoria de seus avós. Disse o meu amigo que eu deveria gostar, pois sempre me interessei muito por história e estava estudando geografia. A primeira carta me impressionou: era aquela carta que narrava a passagem da Coluna Prestes por Rosário Oeste, escrita em 6 de março de 1927 (certamente vocês se lembram do ocorrido). Após esse contato inicial com meia dúzia de cartas pedi outras mais até que... 
Este é o momento de confessar o principal motivo de traçar estas linhas: escrevi uma tese de doutorado em geografia com as suas cartas! Não se espantem: quem leu essas cartas foi afetado pelos relatos ali presentes e desejam que mais pessoas possam lê-las e, dessa maneira, conhecer essa experiência única em um Brasil singular. A minha intenção foi interpretar a relação de vocês com os lugares que percorreram e viveram, especificamente com Rio de Janeiro, Jandira e São Paulo e, em outra escala, o Brasil. Para isso eu li todas as cartas. Isso mesmo, as mais de 700 escritas entre 1925 e 1960, cartas que sobreviveram ao tempo e estavam muito bem guardadas, sobretudo por Chuck, que, devo dizer, marcou algumas cartas.
Chuck destacou algumas correspondências, não sei se para mim, para um leitor eventual ou para um pesquisador interessado. É verdade que ele já vinha disponibilizando uma carta aqui e ali, sobretudo nos registros relacionados ao Jota. Ocorre que as cartas eminentemente geográficas estavam ali, com a letra de seu filho mais novo, comentários e marcações que ele sabia serem preciosas para que entendêssemos um pouco mais do Brasil, ele mesmo enquanto lugar, e seus lugares.
Pois bem, após a leitura, enxerguei alguns agrupamentos temáticos que podiam atestar certas relações de vocês com o lugar, conceito central do horizonte ao qual pertenço, chamado geografia humanista, dedicado a entender, grosso modo, os lugares através da perspectiva dos indivíduos e grupos sociais. Caso se interessem pela tese, será possível encontrar cartas reunidas em “Lugar que encanta/lugar que se estranha” e em “Fusão com o lugar”. No primeiro eu selecionei apenas as cartas escritas do Rio de Janeiro, bem significativas desse misto de encantamento e estranhamento em relação a cidade, sua aparência, seus hábitos, sua gente, seus contrastes, sua beleza e misturas. No segundo, são várias as cartas que demonstram como vocês acabaram se fundindo com Jandira e Brasil, através da linguagem e do sentimento de aconchego, de permanência, de lar. 
Eu gostaria de lembrar, neste momento, um extrato da Carta escrita por Evelyn em 21 de janeiro de 1952, quando estão preparando a mudança para a cidade de São Paulo, após 24 anos em Jandira, e o inglês não é suficiente para expressar certos sentimentos...

"Vocês deveriam nos ver! Temos coletado um monte de coisas nos últimos vinte e quatro anos! O baú das lembranças ainda não foi tocado, e sem dúvida nos trará um período de ‘homesickness’ (saudades é melhor) de vocês dois."
Com a duração, os encontros e os vinte e sete anos decorridos, você Evelyn, foi capaz de interiorizar o sentimento de saudade.  
Como pode ser visto, não seguimos com o desejo expresso por Evelyn em manter essas cartas entre a família. Elas se tornaram tese e estão públicas agora! Escreve-se cartas para a posteridade, não é mesmo? Eu quero dizer, que, mesmo sem querer, vocês fizeram literatura. Colocar em encontro geografia e suas cartas – literatura – permitiu uma tese elaborada desde um lugar sem fronteiras, um verdadeiro entrecruzamento entre as humanidades.
Foi intensa a nossa jornada. De partida eu me senti envolvido e tomado pelos relatos. E fui acompanhando-lhes, percorrendo os lugares, atravessando mais de três décadas, tudo isso sem sair da cadeira, e em alguns anos. Assisti ao início do casamento de vocês, a formação de sua família, o crescimento dos filhos. Foi possível ter contato com os relatos mais íntimos que se poderia obter de uma experiência no lugar. Isso porque vocês escreveram sem amarras, sem “pretensões literárias” e, principalmente, para os que amavam. O mais significante, porém, foi conhecer um Brasil singular.
Creio que não esperavam a transformação das cartas em pesquisa acadêmica. Se esta tese existe, é pelo desejo em compartilhar, difundir, tornar visível esse material tão especial.
A tese acaba aqui, mas a nossa conversa ainda vai durar um tanto. E tenham certeza: as cartas escritas por vocês são inspiradoras. Vão incentivar outras correspondências, ou até mesmo textos mais densos, como o resultado de algumas pesquisas. Vai encantar alguns em busca de uma boa história e outros empenhados em entender esses lugares, esse tempo, essa sociedade, esses hábitos, costumes e tradições, como relatados nesse Correio Harper.
Finalizo ao dizer que escrevo olhando para essa foto de vocês de 1967, aposentados em Westminster Gardens, na Califórnia, bem velhinhos e sorridentes. A mesma risada de vocês, felizes, satisfeitos, uma vida inteira, plena, no rosto – essa risada de vocês, felizes, satisfeitos – sentimento de missão cumprida - essa risada – é a minha agora.
  
Com carinho, 
Ivo Venerotti


*Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro por Ivo Venerotti, sob orientação do Prof. Dr. João Baptista Ferreira de Mello, em 2017. 




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