[GLOSSÁRIO] C de Ciranda
CIRANDA
Eu estava na beira da praia, ouvindo as pancadas das águas do mar.
Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá !
Vem de longe as cantorias e sensibilidades que criam o ponto de partida para as reflexões que agora faço. Daqui de Belo Horizonte me sinto invadido pelas rodas de ciranda e pelos versos cantados por Maria Madalena Correia do Nascimento, imortalizada por Teca Calazans como Lia, moradora da Ilha de Itamaracá, cirandeira e merendeira, mulher das rodas cantadas e dançadas; mulher da educação, das muitas mãos que constroem o mundo; mulher preta cirandeira do Pernambuco, levada pelas ondas inconstantes do mar e pelas variações temporais do céu, entre as forças de Iemanjá e Iansã.
E nessa ida
Quando saio para trabalhar
Eu levo as flores pra São e Jorge e Iemanjá
Iemanjá, Iemanjá
É mamãe sereia
É a rainha do mar!
Se olharmos para o mundo, ao invés de ficarmos presos às burocracias que sustentam nossas práticas científicas e pedagógicas, veríamos que as cirandas emergem das práticas de luta e reafirmação da existência de sujeitos marginalizados. Pescadores e pescadoras, trabalhadoras e trabalhadores das praias e do campo, bordadeiras, fiandeiras e lavadeiras, que cantam para celebrar a vida, o trabalho e a Terra, para construir, no encontro, a solidariedade que fecunda a resistência, que, de mãos dadas e em movimentos circulares, reivindicam o direito a vida pelo direito a festa.
As rodas que desmontam os egos em razão do encontro. Tocar que é dispor a mistura dos corpos em movimentos de energia, emoção e intensidades. Apertos mais fortes para demarcar o passo: estamos juntas! Sensibilidades de lutas afloradas entre mãos que constroem a celebração comunitária. A ciranda cria altares plenos de saberes de Terra vividos e pisados. Só quem se dispõe à roda encontra a força do altar sagrado da comunhão. Onde as cirandas cantam do mundo vivido das gentes: dos amores perdidos e das saudades das paixões antigas; da labuta das roças ou da vida das pescadoras e pescadores; da vida de ganhadeiras da beira do rio ou dos tabuleiros de quitutes nos centros urbanos; da luta dos trabalhadores que se desdobram para erguer levantes de resistência pelos direitos à vida, a suas tradições e a seus territórios; das práticas religiosas diversas e sincréticas, que encontram nas águas e na Terra seu chão fundante.
Porquanto, a Ciranda celebra a fé sincrética do povo brasileiro. A fé que se metamorfoseia para a luta e resistência. Fé que não se limita às convenções do mundo ocidental, imaculadas e embranquecidas, mas que se abrem para cultivo da Terra, para a o festejo dos povos e de suas carnes, corpos no mundo, que trazem as marcas, as histórias, a ancestralidade e os sonhos, pois o chão cirandeiro é um chão de construção e emergência das utopias.
Ô beija flor
toma conta do jardim
vai buscar Nossa Senhora
pra tomar conta de mim!
Sinhá Rainha, tua casa cheira
Cheira cravo e rosa
e flor de laranjeira!
As cirandas se presentificam nas lutas sociais, nas práticas de místicas dos movimentos populares, com força no Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que na prática da Mística contemplam suas vidas enquanto trabalhadores, trabalhadoras e militantes pela Terra, cultivam suas construções artísticas e produções culturais, reafirmando seus lugares enquanto cultivadores da Terra em sua diversidade de manifestações, e na relação com a religião, com a Teologia e com as Pedagogias da Libertação e com as diferentes manifestações dos povos tradicionais, como os Quilombolas, os Geraizeiros, Indígenas e Ribeirinhos. A mística é o espaço e tempo do encontro, da celebração comunitária e da organização da luta social.
Quando as cercas caírem no chão
Quando as mesas se encherem de pão
Eu vou sonhar!
Quando os muros que cercam os jardins
Destruídos então os jasmins
Vão perfumar!
Vai ser tão bonito se ouvir a canção
Cantada, de novo
No olhar da gente a certeza do irmão
Reinado, do povo!
Cirandas dos povos das lutas populares. Cirandas das mulheres pretas, ganhadeiras que construíram com seus ofícios e suas cantorias a alforria do povo preto. Cirandas das crianças, das rodas nas escolas, onde a ciranda é também brincadeira, que potencializa os talentos, que desperta a curiosidade para conhecer o mundo. Por onde corre o rio, nos vales sem fim do mundo, encontrar o mar e romontar os ciclos inconstantes das águas. A Ciranda gira entre os peixes vivos, ou por vezes mortos pela violência despudorada da lama tóxica do capitalismo. Mas da certeza cirandeira daqui, me movimento à luta e a celebração nas cirandas.
Eu morava na areia, sereia
Me mudei para o sertão, sereia
Aprendi a namorar, sereia
Com aperto de mão, ô sereiá
O anel que tu me deste, sereia
Era vidro e se quebrou, sereia
O amor que tu me tinhas, sereia
Era bom e assim ficou, ô sereia
Comentários
Adorei o texto, tocou minha alma, meu ser.