"Sou Alice, da bacia do Opará e você? É de qual bacia?" 💦💙

Em meio ao silêncio barulhento da cidade, de onde escrevo, reflito: é imperativo o retorno da coluna "nossa geografia humanista" após algum tempo de interrupção.

Isso porque está no ar a dissertação de mestrado da agora doutoranda Alice Bessa (UFAM). 

A dissertação "Opará vive em Francisco, Rosa e Maria: Imersões na paisagem-rio de barrancas em ameaça" da mestra Alice de Bessa Silva está disponível para imersão e leitura. 

A força de suas palavras canta uma paisagem e aprofunda um porto numa geografia desde aqui. Mais do que isso: nos revela um rio São Francisco vivo, ameaçado e resistente. Nos lembra da importância de se entender a natureza em suas corredeiras, em suas vertentes, em seus rios que se juntam e caminham água: em suas bacias hidrográficas. O trecho que dá título a esse comunicado é de Alice (BESSA, 2023, p. 134): "Sou Alice, da bacia do Opará e você? É de qual bacia?". Revela um sonho ou, quiçá, uma sociedade que se faz em outros termos. 

O resumo de sua obra nos conta: 

"A distância ou a proximidade que causa cegueira entre os seres humanos e a Terra é o núcleo da ferida que desencadeia atrocidades para a vida mundana. 

Aqui foram elaboradas descrições em diários de imersão pelo alto leito da Bacia do Rio São Francisco (Opará); em um raio regional próximo à foz do ribeirão Formoso. As imersões descritas percorrem paisagens no intermédio entre as primaveras de 2020 e 2021 e, a narrativa meandra entre a seriedade agastada de uma denúncia e a poética dos encontros com o povo barranqueiro. 

O caminho que percorremos nesse tempo-espaço descritivo é atravessado por ameaça às vidas e ao ecossistema deste rio. A iminência de mais um represamento no fluxo principal da bacia é consequência do avanço no domínio da natureza pelos humanos e a conjuntura do púnico sistema econômico reproduzido pelos mesmos. 

Diante do latente prenúncio as pessoas que vivem nas margens ribeiras, seus modos de vida e suas percepções são desveladas como parte das paisagens do percurso. Paisagens que serão interpretadas a partir de suas morfologias culturais e humanistas. No entanto o processo laborativo é múltiplo abarcando também, em uma segunda fase, as estruturas dessas surgências descritivas e alguns mergulhos contextuais através de uma arqueologia das intervenções no leito principal de Opará. 

A descrição imersiva deságua nas relações entre os seres que habitam as margens em iminência do rio alcançando como guarida reflexiva os conceitos de paisagens do medo, de paisagens espirituais e de paisagens linguísticas entendidas através da geografia. "

Palavras-chave: Rio São Francisco; Descrições geográficas; Paisagens; Ameaça; Represamento.


Mosaico Fotográfico do diário de bordo de Alice Bessa. Fonte: BESSA, 2023, p. 109.

Confira um trecho dessa obra:


"

Paisagem da foz de um afluente à humana parte da natureza

Formoso quando chega em Francisco com suas águas doces feito-veredas...

Frias de franzir aréolas;

temperando as correntes d'água do Velho: Voz de foz sussurram aos ouvidos.

Acervo pessoal,

Julho de 2021

Um certo ribeirão, que absorve e reflete o verde das folhas, no susto desemboca em um rio de cor tamarindo-turvo bem maior. O deságue é próximo de onde aquelas águas são potencialmente ameaçadas pela velha dominação humana. Banhei-me na boca da foz desse ribeirão. Na imersão, vinda de um mergulho abri os olhos molhados e...com membros superiores, inferiores e maçã do rosto submersa no rio grande; troquei sentidos com aquela paisagem de foz murmurando. A sonoridade daquilo passou a ser mais decifrável com o tempo. A água que seguia no sentido do sol nascente deslocou-se a seguir na direção da Ursa Menor.

Em um primeiro plano visível - ou o mais próximo aos olhos - a paisagem do rio era de calombos corrente. Choque de encontro de águas no meio do rio grande. Ali se fazem pequenas ondas que assaltam as águas de uma direção para outra. Elas se vinham quase de oeste para leste e, de repente, em alto rio grande se desviavam, seguindo, no sentido sulnorte. É o rio grande quem conduz o sentido; de sobressalto. As águas daquele riacho doce, verdes, frias e com cheiro do fruto de faveiro devem passar a sentir mais as dores desse encontro adiante. O primeiro plano água em rumo a que as próprias águas do rio grande se iam. Os raios de sol se pondo rebatiam de dourado os calombos entre os murmúrios do encontro. 

No segundo plano da paisagem, o rio menor se vinha em meio às galhas escurecidas de mata ciliar. Vinha o ribeirão com uma mancha central amarelo-sol na doce corrente. O escurecimento do dia me fazia ver as silhuetas vegetais, nesse plano. No chão das plantas havia barrancas baixas de terra que nessa horinha só se via aos contornos. O cerrado ciliar grande e retorcido parece proteger e saudar aquela chegada, pra que seja menos alarmada. De um lado e de outro, nas margens, as galerias seguravam o chão e se encontravam com o céu se pondo entre as folhas e o próximo plano.

Por detrás do ribeirão vindo; num terceiro, último e com atmosfera de infinito plano: o avô Sol. Mas ele transpassava para todos os outros planos, nos calombos, nas frestas das silhuetas, no tapete amarelo de meio de rio e na percepção da pele molhada dos pingos que reluziam dourado. Esse plano do corpo, ainda não esta descrito, pois é de onde o sentido e a percepção desta paisagem se refletem. Nesse lugar de albedo, algumas reflexões repontaram à mente. O sol quedava o visível das coisas ao mesmo tempo em que iluminava. Nisso se esvaiam os planos da paisagem de foz e tudo parecia uma pintura. A quarta parede do espetáculo da natureza se recai fazendo com que me sinta parte disso tudo. Humana parte da natureza.

A quarta parede precisa cair para que a gente se veja parte viva disso. E, então, se movimente enquanto parcela morfológica da Terra. Nossa íntima relação com ela não é apenas um privilégio. Aos que têm ouvidos: ela murmura. E se não a escutamos, depois ela grita. Algo chamado de selvagem há na nossa humanidade que não tem mais tempo e nem espaço para natureza - ou para si mesmo. O que chamam de civilizar-se é fundamentalista ao ponto de cortar o elo que nos compreende como parte disso. Um elo que é também imersivo e não só da mente. Não é apenas racional, se me entende. Isso é denunciado há tantos anos e principalmente pelos povos originários deste país. A natureza que parece invisível teve sua selva dominada por outro tipo de selva. Fruto do labirinto mental que sobrepõe aos sentidos e sensações do corpo, da alma e do espírito. Uma cegueira criada na mente pelos seres humanos e para os seres humanos. Uma doença que causa prenúncio ao fim dos tempos na Mãe Terra.

Isso afeta outras esferas de vidas. Nós humanos, nos colocamos como protagonistas sem considerar que somos parte dessa natureza. E, então, quando estamos realmente imersos nessas paisagens naturais parece que nos curamos um pouco da cegueira. Que os atalhos mentais humanos que nos trouxeram até esse caos no mundo se findam... Mas não. Por enquanto é só mergulho e o privilégio da poesia natural de cada um. É preciso quebrar a quarta parede e agir. Por isso, saltamos dessa paisagem natural para entender e agir junto ao caminho das paisagens culturais que respeitam outras formas de vida e também a própria vida humana.

Esse ribeirão - o rio menor - se chama Formoso. E, o rio grande tem nome de São Francisco... 

"

💦💙


Comentários

alice à bessa disse…
Que delícia esse trabalho estar um pouquinho aqui, recebido com palavras tão acolhedoras dessa nossa referência da Geo humanista!Foi uma surpresa boa depois de um tempo sem abrir o blog do núcleo.Amoo!
alice à bessa disse…
Link da dissertação: https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/9446

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