Diário a bordo do ápice outonal na lua nova de silêncio.


A água do ar se espalhou em partículas de alta pressão. A palavra que soa boa disso tudo é: doar.  A umidade se foi acima, baixo, leste, sul, oeste e norte. É bom que tenhamos guardado gotículas dentro. É tempo de seca. Aqui, pelo menos, não se congela o que se resta de umidade. Ainda assim se sente cada grau dessa pressão nas veias e articulações. O ápice outonal esta entre a última lua cheia e a lua nova de hoje. Entretanto esse fulgor introspectivo combina mais com a saudosa lua nova a que nos encontramos. No hemisfério sul, acabamos de passar pelo Samhain (lê Souin), ritual em que se comemora o dia das bruxas. Pouco se ouve disso aqui, mas é como usar gorro natalino no verão tropical que se celebra esse dia no outubro sulino. Ter uma sazonalidade eurocêntrica é um blefe tão cego para quem existe aqui. Essa cegueira naturalizada me incomoda.  Aqui é ser-tão. Resistiremos e reexistiremos.  Há uma necessidade geográfica de fazermos a transmutação. E assim vamos mudar a ordem schopenhauriana de que o escrito primeiro é o único digno de ser lido. Ora, aqui ele precisa ser transmutado.  Nos continentes do sul, se guiar por quem escreveu letra reconhecível primiero é uma colonização da escrita. Partimos daqui! O sol daqui não é o sol de lá. Respeitemos  nossa luz! Truco! É raríssimo que generalizações não sejam falaciosas e nesse caso, foi. Mas quero acreditar que nossos escritos são os primeiros daqui. Primeiro em escala de lugar e não de mundo... Isso para continuar lendo Schopenhauer.  Como percebeu a Mafalda, andar na parte de baixo do globo ou de cabeça para baixo nos faz apegar mais a este chão [fui buscar um café].

 Bem, ápice outonal. Este é o tempo em que os espíritos bons e ruins estão presentes e são convidados para a dança da equanimidade. Já há mais de meio outono percorrido. O frio e a escuridão – cada dia maiores - estão pressagiando o inverno.  Isso é dentro ou fora de si? Talvez a janela esteja bem aberta para o mundo e o que o ser vibra compactua com as emoções terrenas. Ou então, a bolha para o mundo  pode não nos deixar perceber. Acredito que para mulheres vivenciar o que ocorre na mãe Terra é inevitável. Bem [gole de café], é quase unânime nas literaturas pagãs das percepções espírito-mundanas que estes são tempos em que as energias negativas se aproximam. O equilíbrio ritualístico a que o samhain nos conduz é feito por nós mesmos. Muitas vezes a melhor forma de se equilibrar é se desequilibrando e conhecendo de perto o caos que isso pode ser. Cada ápice sazonal é um.  Podemos dizer que tivemos anos em que nos desequilibramos e anos em soubemos equilibrar essas energias. Em termo territorial brasileiro, estamos em completo desequilíbrio.   Nós, que ainda temos o privilégio de esquentar as costas em um agasalho, passamos pelo portal em que as energias estão frias, as carências de corpos presenciais ultrapassam um giro na terra, e a empatia parece se tornar cada vez mais rara porque nossos próprios distúrbios crescem. Quem será empático com tanta dor e tristeza a que esses tempos trágicos acometem? E quem será empático com esses? Mas, não esqueça em nenhum segundo, somos privilegiados! Para alguns a água subiu e se espalhou com serenidade pelas paisagens que mudam as cores do céu frio. Para outros levou a saúde existencial do respirar. O alimento... A paz físico-material. Esse deveria ser um tempo de sonhos para todos, noites maiores. Para os que adormecem é bom deixar o caderninho de sonhos na cabeceira e tentar usar esse oráculo interior. É tempo de aprendizado aos que tem este privilégio.

Nessa de espíritos, estamos também rodeados de seres que transmutam de estado e fazem passagem nestes tempos. Não. Não é uma romantização. É respeito. Passagens são sempre carregadas de sacralidade e instauram encontros entre dimensões. Talvez todo o Brasil tenha se transformado em um grande portal de espíritos em passagem. Alguns deles tão solidários que só vão depois de aparecerem nos sonhos de cada um que se entristeceu. Outros querem deixar sorrisos...  Mas não acalmem o resistir, é uma necropolítica impiedosa o que se passa aqui. Ao mesmo tempo barbaridades transbordam da falta de sanidade de alguns. Dá para cobrar que o limite não seja a violência? Ou que alguma moral cubra as ações de todos? Há doutores titulados humanistas que elegeram essa necropolítica!!! Mas, ainda acredito na educação. E isso virou um mantra do seguir. Ninguém contabilizou o que a educação evita e evitou no meio desse caos. Porque a bondade, quando durável; é feita em silêncio. Assim como ‘não tem altura o silêncio das pedras’ que Manoel de Barros traduziu. O silêncio veio primeiro e a ele devemos recorrer quando a água no ar espraia. Essas margens merecem a nossa atenção. Assim como dona Xica, que em silêncio e paciência observa o fogo que envermelha suas panelas. Devemos observar e equilibrar nosso construir nos tempos de recolhimento.

No equinócio de outono trouxemos a alegria das ultimas colheitas para nos aquecer da chegada do frio. Agora, o frio já adentra nossos poros e convidamos a equanimidade para nos acompanhar no inverno que envém através de ventos-prenúncio de rigidez. Que o inverno não beire o inferno! Estamos preparados para uma terceira onda virulenta mais forte que essa? Espero, que não precisemos estar. O recolhimento é o tempo de se aquietar em si. Que seja possível planejar o afazer, do ponto em que estamos na vida.

#escritosd'alice #sérieequinóciossolstícioseápicesdasestaçõescorpo-terra

Como Citar este texto?

BESSA, Alice. Diário a bordo do fim dos tempos da colheita, equinócio de outono, 2021. In: Blog do NPGEOH. Minas Gerais, 20 mar. 2021. Disponível em www.npgeoh.blogspot.com. [colocar data de acesso].

Referências, consultas e inspirações desse texto:

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o ofício do escritor. Tradução:  REPA, Luiz Sergio. São Paulo. Martins Fontes, 2003.

BARROS, M. de. Manoel de Barros: poesia completa. São Paulo: Leya, 2013.

QUINO. Mafalda: todas as tiras. Tradução: STHAEL, Mônica. Martins Fontes, 2016.

Dicionários

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim e Lúcia Melim. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

RONNBERG, Ami. O livro dos símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. São Paulo, TASCHEN, 2012.

Filmografia

XICA. Direção: Viviane Goulart. Documentário, 17’. Produção realizada na cidade de Goiás- GO. Brasil, 2019. Festival de Cinema e Culturas Cerratenses, edição online. Disponível em https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=EW5sbZx6C8E

ESTUDOS SOBRE O VENTO. Direção: Cristina Madeira. Produção realizada no litoral da Bahia. Brasil, 2020. Festcinero -RO.

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