Diário a bordo do fim dos tempos de colheita, equinócio de outono, 2021.

(Inauguração da Série: Equinócios; solstícios e ápices sazonais nas estações do corpo-Terra)



Dibujos dos diários - Alice Bessa


Os cabelos voavam com a brisa do rio e o furar do espaço-tempo que uma bicicleta provoca. Senti cheiro de sangue, seria o meu ou da Mãe Terra? Lembrei-me: o equinócio de outono se aproxima. Um dos fios epistemológicos geográficos que mais me fascina é o estudo dos movimentos da Terra. Sua dança que produz nosso tempo. Meus fios ondulados receberam também luz de sol naquela manhã. Os pensamentos uterinos, molhados de sangue foram até a posição dos astros.  A antiguidade tinha uma relação muito íntima com esses movimentos celestiais. Saudávamos o tempo da Mãe Terra de forma orgânica. Hoje o que restou para a grande massa de seres humanos terrenos é o calendário ocidental. A geografia, assim como a física, guardou a matemática desse estudo, mas ela - a geografia - faz pontes que relaciona essa dança [de forma limitada] aos ciclos da natureza na Terra. O colchete que trouxe a palavra ‘limitada’ esta aqui porque a ciência não costuma relacionar o ocultismo e nem o gênero feminino em suas navegações de pesquisa. É como se o navio epistemológico da ciência, só tivesse tripulantes masculinos e nunca se ancorasse em alto mar para que alguns mergulhos fossem feitos. Esses mergulhos ficaram restritos a arte, desde quando houve o nascimento da tragédia denotada por Nietzsche, Husserl e outros filósofos que alcançaram o sopro dessa noção. A tragédia é justamente a fragmentação. Talvez não somente a fragmentação, mas a falta de intercessão. Raros são os mergulhos que entrelaçam planos etéreos à ciência e quando existiram, foram bem masculinizados. Não tenho nada contra a evolução do pensamento masculino. Mas em se tratando de natureza, nós mulheres participamos intimamente dos ciclos e movimentos astronômicos. Silenciar-nos é um atraso para evolução das idéias e ações no mundo. Os antepassados xamânicos escutavam com muita atenção o que uma mulher dizia, sobretudo enquanto sangravam. Existia o entendimento da relação sagrada entre esses dias, o sangue, as mulheres e o grande mistério da natureza da vida. A racionalidade não consegue ligar o fio dessa relação porque a racionalidade é masculina. Ora, não digo que não é necessária, precisamos entender que o saber é um pêndulo, com várias direções, camadas e níveis de consciência. Leste, sul, oeste, norte, acima, abaixo e dentro. A consciência do “dentro” é um núcleo primordial com infinitas e desconsideradas camadas, ademais quando silenciamos mulheres. O corpo feminino tem uma sazonalidade pareada com os movimentos lunares quando nossos ciclos uterinos são saudáveis e sem interferências tóxicas que alteram nossos ritmos internos. Esse núcleo é todo um universo que pode ser estudado para entender o espaço sideral assim como James Lovelock estudou Gaia e a partir das características investigadas descobriu que nesse tempo não poderia haver vida humana em Marte. Ele não precisou pisar no corpo celeste vermelho para afirmar, porque estudou os tipos de fenômenos naturais e únicos que são capazes de instaurar a nossa vida. E sim, citei aqui homens, literaturas clássicas da ciência, quem sabe algumas luzinhas se ascendam. Um tema tão nosso e que não é dito por nós. Nosso universo mulheril de descoberta anda cada vez mais dopado de tóxicos e ácidos do rejuvenescimento porém quando resolvemos escutar o corpo sazonalmente algo oculto se instaura. É como se entendêssemos de forma simples os fenômenos naturais planetários; além disso, nos percebemos como parte da natureza, filhas dela, corresponsáveis por ela. As celebrações necessárias ao corpo-filho da Terra também são relacionadas às danças sistêmicas dos planetas, do Sol, das galáxias, astros...  Dos elementos aos cantos, tudo participa de uma coreografia da relatividade universal. É como se instaurassem vácuos na distancia espaço-tempo e ali temos o instinto de nos percebermos Terra. Todas essas ritualísticas contribuem para as isostasias celestiais. O que sabemos é que parte desses ensinamentos sagrados transmutou-se em cinzas e foram levados pelo vento inquisitivo. Nossas ancestrais que vivenciaram encontros orgânicos enquanto a Terra era mais verde também voaram em cinzas. Estou com Mateus Aleluia quando ele assopra em canto que não aceita quando dizem que o fim é cinza... Também vejo o cinza como um início em cor.  É triste que o cristianismo tenha indemôniado nossas buscas. Mas estamos aqui. Essa foi mais uma forma de silenciar o poder da voz feminina, quando nossos poderes estavam em processo expansivo. E a que ponto chegamos de desequilíbrio com a Terra, não é mesmo?

Bem, abri os olhos hoje às 6:37 da manhã. Acabei de checar que esse foi o exato momento dos equinócios. O equinócio de outono, nesse dia vinte de março no hemisfério sul nos avisa que desse ponto de posição da Terra em diante as noites serão maiores. O momento do equinócio é a transição em que o dia e a noite se encontram ocupando um mesmo espaço-tempo. Antes desse dia a claridade solar ocupava a maior parte do tempo aqui no sul austral da Terra. Tenhamos respeito a esse tipo de acontecimento, meus caros. Digamos que é um instante em que os poderes contrários se equilibram. Por pouco tempo, talvez milésimos de segundos, mas se equilibram. E seguem também espaços-tempos próximos a esse equilíbrio antes e depois do momento equânime da Terra.  Acabamos de passar por um tempo de colheita. O milho é um símbolo desse tempo. Nossas colheitas subjetivas e intersubjetivas também são a essência desse tempo. Enquanto comunidade territorial brasileira, pouco se colheu no último giro-dança terrasolar.  Nossa situação parece ser o ápice do negacionismo ao reconhecimento de que somos parte da natureza. Coincidência ou não mas, na mesma época em que o vírus começou a se espalhar pelo país no pré-outono passado ele se alastrou de forma ainda mais violenta neste pré-outono do nosso território. Triste colheita tivemos. Colhemos o que plantamos. E não se engane, é sempre assim.  A nível pessoal tive algumas fartas colheitas mas não colhi tudo que semeei. Errei. E ultimamente tenho tido orgulho desse reconhecimento. É raro errar e reconhecer o erro na Terra dos ‘Homi’. Tenho admirado os que reconhecem o erro. Estes tem qualidades de mestres. Viver é perigoso e difícil também, Rosa. Enquanto comunidade erramos juntos. Foi a linguagem o erro? O comandante do navio? Estamos em uma nau sem rumo? Entendo todos como corresponsáveis. Se alguns tem consciência e outros não onde esta o erro dos conscientes?  Será que mergulhamos demais e esquecemos que estamos num navio? Tem gente no porão do navio, sem ar. Quantas vezes visualizamos cenas dessas na história? Se a maldade e a crueldade não tem mais máscara onde não conseguimos nos organizar contra o mal? Perdemos a noção estratégica? Evoco Zumbi, Atena, Arthemis, Madalena. Evoco Jorge, Beatriz Nascimento, Maria, Jesus e José. Evoco as forças da natureza contra essa ruindade negacionista que silencia e mata. Evoco sabedoria para os tempos de recolhimento anunciados pelo equinócio... Evoco força para que as colheitas boas sejam motivo de celebração no próximo início de outono. Evoco a voz de Clara Nunes cantando para o Sol derramar toda a sua essência desafiando o poder da ciência para combater o mal. Vamos cuidar de nós-Terra.  Conhecemos a cara do mal, a cor do mal, o gênero do mal e a forma covarde de agir do mal há séculos. Que as ações que combatem isso proliferem-se. Feliz Herfest, que venha um novo giro. Celebre suas colheitas. Fure o espaço-tempo sentindo o vento; o vento equânime do equinócio. 

 Como Citar este texto:

BESSA, Alice. Diário a bordo do fim dos tempos da colheita, equinócio de outono, 2021. In: Blog do NPGEOH. Minas Gerais, 20 mar. 2021. Disponível em www.npgeoh.blogspot.com. Acesso: [colocar data de acesso].

 Referências, consultas e inspirações:

BAGGOTT, Andy. Rituais Celtas. Tradução: CECILIATO, Ana. São Paulo: Madras, 2002.

 LOVELOCK, James E. A physical basis for life detection experiments. Nature,Washington, v. 207, n. 7, p. 568-570, 1965.

 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Traduzido por FERRER, Diogo Falcão. Rio de Janeiro: Ed FORENSE, 2012.

 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992

 JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967.

 SAMS, Jamie. As cartas do caminho sagrado: a descoberta do ser através dos ensinamentos dos indígenas norte americanos. Traduzido por FERNANDES, Fábio. Rio de janeiro: Rocco, 1993.

 Dicionários

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim e Lúcia Melim. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

RONNBERG, Ami. O livro dos símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. São Paulo, TASCHEN, 2012.

Musicografias

NOGUEIRA, João. As Forças da Natureza. Cantada e interpretada na voz de NUNES, Clara. Álbum: As Forças da Natureza, Odeon. Rio de Janeiro, 1977.

ALELUIA, Mateus. Amor Cinza. Álbum: Os Cinco sentidos, 2010.

Filmografias

LAS SILENCIADAS. Direção: Pablo Agüero. Roteiro: Katell Guillou. Produção de Fred Prémel, Iker Ganuza e Koldo Zuazua. Espanha, 2021. Disponível na plataforma streaming NETFLIX.

LOS SILENCIOS. Direção e autoria: Beatriz Seigner. Uma co-produção independente entre Brasil, França e Colombia. Brasil, 2018. Disponível na plataforma streaming do MUBI.


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Comentários

aline nogueira disse…
Sinto uma coerência que é sonora, de tempo e respiração, entre essas palavras e corpo que escreve.
É como se... cada encruzilhada que formou o até aqui fizesse sentido lendo isso. Que você navegue por mares profundos e nos conte tudo nesses diários de bordo!

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