[GLOSSÁRIO] S de Sentimento
SENTIMENTO
Sempre quando penso (ou falo, escrevo, sonho, perâmbulo) sobre Sentimento, retomo a memória os poemas de Carlos. Um acesso quase que inconsciente, mas sempre oportuno. Sentimento diz mais da afetação do mundo, da disponibilidade do corpo a ser adentrado e maculado pela imensidão das forças que atravessam o ordinário dos dias, do que, apenas, de fabulações interiores desprendidas da experiência mundana.
Para falar de Carlos, trago um fragmento de seu já clássico, "O Amor bate na aorta":
"Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria."
Não atoa que o Sentimento é avassalador, perigoso e violento. É o ácido que corrói as paredes que criamos em nossos corpos e em nossas cabeças repletas de milhões de histórias. Ainda que seja quase leviano falar de corpo e de cabeça como coisas separadas, são uma só. Mas peço perdão pelo didatismo positivista, e espero que siga comigo minha trilha pelo texto de Carlos. O ácido, venenoso, aqui adoça a boca já esmurecida dos corpos velhos, que tanto já sentiram. É preciso mais, e preciso ir além. Se achas que o sentimento é algo igual, monótono, aí te enganas. Sentir é sempre a novidade, é sempre o encontro com aquilo que não estávamos esperando, ainda que nosso corpo desejasse. Ao sentir, sentir o mundo, construimos em nossa carne novas formas e geometrias.
Os Banhistas (1973) - Maria Auxiliadora. Fonte: projetoAfro
Me lembro de outra poeta mineira (acho que estou um pouco provinciono), a beata profana Adélia Prado. Adélia disse, certa vez em uma entrevista, que a poesia é algo que nos toca, e ao tocar, cria em nós uma forma original, ainda não vista ou falada. Não seria o sentimento, a entrega e epifania mundana, um instante poético? Sentir é se embreagar de poesia, essa forma estranha e não explicada de viver o mundo, de se encontrar com a Terra dos homens e das mulheres e dos animais e das plantas. Por isso, as vezes, não conseguimos entender os versos fractais de um poema. A poesia, ou o Sentimento, não se explica, se sente.
Mas seria então o sentimento algo particular, individual, restrito ao corpo do sujeito sentimental e sentimentalizado? Não existem afetos comunitários, solidários, públicos? Bem, ao afirmar que o sentimento é sempre algo externo, que emerge da disposição de sentir o mundo (pelos 5 ou quantos sentidos quiseres), já deixo demarcado que não há sentimento fora do encontro com o outro. Somos complexos, distintos, complicados, por isso, as formas de encontro com o mundo são tão diversas. Ainda assim, há linhas de desigualdade e de solidariedade que nos ligam, nos fazem ser, também, corpos interligados, classe! Mais ainda, não é possível experimentar o mundo longe do mundo experimentado.
Velório da Noiva (1974) - Maria Auxiliadora. Fonte: projetoAfro
Por isso, termino com outro fragmento, esse corpo estilhaçado da inteireza não acabada das obras. Mas, também, a parte que me resta de tudo o que já vivi. A vida é esse amontoado de fragmentos que nos resta e que acumulamos em nossas corpos. É a cicatriz, mais que a ferida ou o instante do machucado. Pois bem, Carlos diz assim:
"Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos."
REFERÊNCIAS:
O Amor bate na aorta - Carlos Drummond de Andrade.
Mundo grande - Carlos Drummond de Andrade
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