O pássaro avuô: diário de bordo sobre práticas de afloramento das geograficidades através do corpo.


 

Um Piaya Cayana, pássaro conhecido como alma-de-gato aqui no norte mineiro tem pousado-cantante nos primeiros planos das paisagens das minhas janelas. A última vez que vi um desses tão de perto foi enquanto era aluna de graduação, comprometida com as geomorfologias terráqueas; as formas que a dança entre a água, o ar e a terra deixam sob nossos pés. Aquele pouso nas grades da janela-leste, amanhecendo a atmosfera da avenida Antônio Carlos, me trouxe uma epifania. Naquele canto-pássaro que amanhecia, percebi uma ponte essencial entre os seres e a Terra. Precisava então me voltar para as humanísticas entrelaçadas naquelas morfologias. Precisava entender as intersubjetividades e subjetividades dos corpos no mundo. Os encontros entre as formas-corpo, as formas-alma, as formas-espirito e as formas-Terra. Desde aquele dia, essas foram  minhas geografias. Nesse caminho, encontrei pessoas que também buscavam encontros geografia-ser. Sedentas e bebendo bibliografias que me acalmaram em parte. Geograficidades... Esse conceito, que o corretor ortográfico ainda não aceita, tem igualdades de gênero à serem decifradas - mas este é assunto de outros diários.

Como nos deixou essa frase do educador Paulo Freire:  'é fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, até que num dado momento, a tua fala seja a sua prática'. Percebo que somos conduzidos desde o nascimento a absorver o mundo a nossa volta através de um prisma de dominação socio-cultural. Sabemos, enquanto comunidade da geografia humanista, que a geografia além de absorvida pode ser exalada através dos seres. Nesse sentido, o caminho me vestiu desde sempre de: canto, dança, teatro, ritmo, meditação, sabores e tambores. Nada disso se costurava, e nem houve essa intenção. Até que hoje percebo, ao som d'alma-de gato, que estive tecendo esse exalar geográfico através de práticas, desde sempre. Num dançar, de coreografias livres, dançar a alma. No cantar sem  preocupar com afinos outros, cantar a alma. No expressar o que sou em gestos, como num teatro brechtiano. No sentir de sabores e tambores do coração; percursos que vieram ritmando os passos. E até no perceber em trocas com o mundo a partir da meditação. Essas são práticas para o afloramento de geografias íntimas. Há uma medicina tão sagrada nos aflorares geográficos. Há o ser no mundo! Algo simples e comumente invisibilizado.

Esses pensares, que voavam feito  pássaros se depararam com o recebimento, via e-mail, de fotos das práticas que tive oportunidade de fazer com algumas turmas de graduação em geografia. Turmas que buscavam sentir  sabores geográficos através da disciplina ministrada pela professora Virgínia Palhares. A geograficidade de gênero feminina talvez guarde o segredo de como essas imagens abraçaram meus pensamentos num instante certeiro. Me lembra um sábio e essencial conceito milenar: instinto. Há muito o que se desvelar em fenômenos, há todo um devir... Há também casulos científicos a serem transmutados nesse desvelamento.

Agora, me vou junto ao pássaro que acaba de avoar dos pensamentos.

ps: é bom ser parte desse grupo de colunistas da página de expressões do Núcleo de Pesquisa em Geografia Humanista. Minha escrita gosta de pousar aqui. Desde que a página era um desejo ela era bonita em trançar nossas escritas de forma livre.



Comentários

aline nogueira disse…
seus escritos sempre desaguam coisas bonitas e ricas em provocações de pensamento. é muito bom te ler, mulher! volta sempre, volta muito pra pousar aqui.

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