Lugar de reza em tempos de festa: Tibuna/MG

Na coluna "nossa geografia humanista" de hoje, apresento o trabalho de conclusão do curso da nossa querida npgeoniana geógrafa professora Ludmila Virgínia Pereira Gondim, denominado "Tibuna: um lugar de reza em tempos de festa", apresentado ao Departamento de Geografia da UFMG em 2016. 

Ludmila vive o sagrado em tempos de festa na pequena comunidade mineira de Tibuna. "Apesar da
proximidade com Belo Horizonte, a comunidade possui características entrelaçadas de um cotidiano citadino e rural. Preserva ao longo dos anos uma memória cultural religiosa que é passada através das gerações pela manutenção de um modo de ser do homem religioso e pelo reviver da experiência religiosa no período festivo." (GONDIM, 2016, p. 7).

Fotografia de Ludmila Gondim (2016)

Confira um trecho desse trabalho abaixo. 

BATENDO O MARTELO

Embarquei pela estrada dessa pesquisa me propondo a fazer diversas coisas como participar da festividade de São Geraldo não apenas como alguém que vai para a festa, mas na oportunidade de me entrelaçar ainda mais com as pessoas da Tibuna e deixar para elas um registro de suas memórias, da sua história de tradição e cultura religiosa. Algumas ideias ficaram pelo caminho e outras não aconteceram pelo simples fato de que nem sempre o que queremos ver aparece aos nossos olhos. Sobretudo, demorei, e o demorar permitiu-me a experiência. Vivi a Tibuna. 
Filha da roça, não sou moradora desse lugar, mas mantenho um laço de raiz e memória com esse pedacinho de chão. Revivi na roça de hoje lembranças de férias da infância, caminhando pela estrada de terra vermelha no raiar do dia; conversando com as pessoas, muitas que só apenas cumprimentava; frequentei o Centro do Mundo da Tibuna não apenas vendo, mas sentindo a energia das pessoas e daquele lugar sagrado. Encontrei a lugaridade de Werther Holzer, pois entre os tibunenses há um movimento de compartilhar a todo momento a cultura religiosa e a memória, as experiências de vida.
A memória religiosa dos moradores da Tibuna é cultural. Não é necessário estar em contato com o lugar sagrado da Igreja para que as lembranças aflorem. Os tibunenses seguem o modo de ser do homem religioso de Mircea Eliade. Pautam toda a sua vida na experiência religiosa. Assim, através das lembranças contadas essa tradição é passada. 
A Festa de São Geraldo foi a base para falar da transmissão da tradição religiosa ao longo das gerações e da comunhão em torno da fé que faz com que a festa aconteça. Relembrar a vida de São Geraldo tal como era e agradecer e pedir ao padroeiro, aquele que intercede por eles junto a divindade maior, o Deus, é uma forma de retribuir, com ofertas, as graças alcançadas, o bom ano que vivem.
Viver a Festa de São Geraldo me mostrou que a manutenção do festejo frente a modernização lenta e gradual comum a todas as comunidades rurais do interior das Minas Gerais, tão próximas à capital, se dá pela perpetuação da cultura religiosa contada, vivida e valorizada enquanto riqueza religiosa para os moradores da Tibuna. As crianças aprendem sobre a cultura religiosa participando dos ritos praticados no lugar sagrado, a Igreja, e também são incentivadas a participar do leilão e "tomar gosto" pela brincadeira. Os leilões representam a comum unidade das pessoas em torno da obra maior que é a Igreja, a hierofania central da Tibuna, mas que cabe nesse momento o profano, a brincadeira da mentira, a alegria do beber e comer. Nos leilões se revelam o valor social do partilhar o alimento sobre o qual as pessoas se unem.
O lugar de reza, o lugar do sagrado em tempos de festa me revelou muito mais do que sabores, jeitos de falar, cheiros, práticas religiosas, as características físicas do “Centro do Mundo” da Tibuna, ou os lugares considerados por eles sagrados. O modo de ser religioso dos devotos de São Geraldo da Tibuna revelou também a existência do tempo e lugar do sagrado e do profano atrelados ao tempo e lugar do ser feminino e do ser masculino. Identificar esses tempos e lugares me permitiu traçar mais uma tradição passada ao longo das gerações, pois desde crianças as meninas e os meninos aprendem qual é o seu lugar e o seu tempo no festejo. 
A pesquisa me trouxe também desafios inesperados e estar aberta para ser tocada pelos desafios mudaram alguns rumos. Não consegui fazer o mapa dos símbolos sagrados, mas ainda quero e me foi reivindicado deixar no bar da roça um memorial da Festa de São Geraldo. Tinha como objetivo buscar e entender a relação de identidade que as pessoas mantêm com o seu lugar de origem à medida que retornam para a Tibuna na ocasião da festa. A surpresa é que não pude realizar essa etapa da pesquisa. Quebrada a tradição da família festeira, a festa foi pouco divulgada e quase não aconteceu. Não havia nesse ano antigos moradores da Tibuna que moravam fora da comunidade. De toda a minha família que não é pequena, apenas eu estava lá como "forasteira". Negligenciei a fotografia e me permiti ao mesmo tempo sentir a festa e guardar na memória.
A vivência de todo o tempo de reza e festa na Tibuna aflorou em mim sentimentos que estavam adormecidos. Fui tomada por algo inexplicável durante o caminhar da procissão. Carregando aquele andor, nada leve, debaixo de sol quente, ouvindo aqueles passos e tocada pelas vozes ao cantar o louvor a São Geraldo comecei a chorar sem explicação. Por vezes, em momentos de silêncio, olhando o céu que me cegava de azul, não conseguia falar, apenas me deixei levar pela fé e pela religiosidade que rege a vida dos que ali vivem na roça.
E então, chegando ao fim, ou pelo menos a um entroncamento da estrada me pergunto: De onde viemos? Para onde vamos? Ainda não sei, e nem sei se quero saber. O que sei e tenho certeza é que de toda a experiência que vivi na Tibuna algo se desvendou em mim, e foi a fé em São Geraldo.

Viva São Geraldo!

Acesse o trabalho completo aqui!

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