[FotoGrafiar] Por uma Geografia ordinária através da arqueologia das imagens fotográficas

 Criação de Valéria Amorim do Carmo

"A foto lembra, minha avó...nós morávamos em um lugar que tinha muitos pés de goiabas e ela fazia doce de goiaba é nos colhíamos as goiabas e ela fazia o doce de goiaba numa tacha como o da foto. Ficava maravilhoso. Ela sempre gostou de cozinhar no fogão á lenha e de fazer doces de mamão, goiaba, abóbora, etc. Como minha avó veio do interior e eu passei boa parte da infância com ela, nós plantávamos muita coisa e fazíamos muitos doces e outras coisas também...claro”


"o meu encontro com o Vale Jequitinhonha se deu de formas a travessar-me. Muita coisa em mim chega antes desapercebidas, ou ainda não havia me encontrado. As marujadas, catopés e folias de reis também me encontraram, sensações de alegria com o canto, com o tocar do tambor, com a fé. As portas das igrejas católicas se abrem para a fazeção de um enorme momento de fé. As roupas, com cores que simbolizam alguma querência (paz, saúde, amor), mas que também representam santos de fé. Os espelhos, reflexos representam os parentes portugueses, as fitas coloridas também possuem significância. Crianças, jovens, adultos, mulheres, homens, idosos, tradição, ancestralidade, manifestações culturais que as vezes estão perdidas em alguns locais, e achados e fortes por entre outros que encontramos nas travessias que a vida nos coloca, no que o mundo dispõem pelos caminhos e meios “uniformes”


“uma chave e um pedaço de madeira que parecem ter sido arrancados de um local. São destroços de um lugar destruído. Para muitos traz imediatamente a lembrança da tragédia de Mariana. Pra mim trouxe a lembrança da chave da parte da cozinha do fogão a lenha da minha casa. Uma parte antiga foi totalmente demolida para dar lugar a cozinha nova. A porta não fechava direito, a chave, exatamente como a da foto, passava direto na fechadura. E até hoje quando sonho com alguma situação em que preciso me esconder, sonho comigo tentando fechar essa porta que não fechava.”

 


Dias atrás parei com essa foto na mão. Nem parecia que já tinham passado dois anos de um crime hediondo e sujo. As dores ainda são presentes. As feridas sagram incansavelmente nas lagrimas de um povo apartado de sua terra, retirados de seu chão, exilados da história ali marcada em cada construção, em cada pé de planta, em cada sonho costurado no vento, nas árvores, nos vales e no correr do rio.  2 anos e os problemas sequer foram amenizados. 2 anos, e outros ataques às gentes e àquelas Terras foram oficializados por empresas, grupos, governantes e 'cidadãos', que a canetadas frias fazem trocas e acordos que desconsideram e atropelam vidas, histórias, bichos, plantas, sonhos. Quando me envolvia com essa fotografia, via uma história interrompida pela agressividade da lama. O café que estava no bule provavelmente não foi tomado, e assim como o pó do coador, virou rejeito, descarte. No café passado estavam pessoas, saberes, vontades, um instante de descontração e saciedade. 2 anos, e Bento, Paracatu e Gesteira são hoje lugares velados pela toxidade não apenas da lama, mas de um governo descompromissado com o povo, suas lutas e histórias; de um sistema econômico que destrói e ataca sem pudores e freios, arrasando o mundo e destruindo a Terra; de pessoas que viram os olhos para as dores de tantxs que ainda sofrem e choram. Justiça não foi feita, e acredito que pelas vias legais não se fará. Por isso, que as lutas não se cessam e os gritos não calem. Onde for possível, que uma voz se levante: Por Bento. Por Paracatu. Por Gesteira. Pelo Doce, que amarga a triste dor de correr em vias de morte.

Por uma Geografia ordinária através da arqueologia das imagens fotográficas

Ainda criança pequena, me vejo sentada à frente da televisão vendo as pirâmides do Egito e a seus pés, intrépidos escavadores com seu pinceis a limparem pacientemente os sedimentos que encobrem parte de não-sei-bem-o-que. Aquela visão me fascinou. E, a partir, daquele momento eu sabia: quero ser arqueóloga! Ao pensar isso em voz alta, minha mãe, que estava ao meu lado, vira em minha direção e diz: para ser arqueóloga você vai precisar estudar história e geografia. Como uma aluna mediana do ensino fundamental que fui, comentei: Ahhh neimmm!!!

Mais de 40 anos se passaram e exatamente neste momento em que me ponho a pensar sobre a fotografia, descubro que consegui realizar aquele antigo desejo, apenas com um formato um pouco diferente por se tratar de uma arqueologia fenomenológica. É exatamente isso que tenho buscado fazer com a fotografia, escavá-la pacientemente com o intuito de descobrir o que ela tem a nos dizer enquanto potencial desveladora da geograficidade.

Penso o ato de fotografar, que na minha forma de pensar vai além do apertar de um botão, se assemelha ao que faz o arqueólogo exigindo inclusive, as habilidades de um bom escavador. Fotografar é saber usar pacientemente um “pincel” para que os sedimentos sejam retirados e o que estava encoberto possa ser desvelado. E neste processo de escavação, é preciso pensar a fotografia tanto do lado de quem a cria como do lado de quem a irá contemplar.  E aquele que contempla uma fotografia precisa fazê-lo pacientemente. É preciso, portanto, saboreá-la! Minha experiência com a fotografia tem mostrado que o desvelamento vem antes e continua depois da foto “pronta”. Como disse, é preciso usar o pincel com destreza para que o oculto se revele.

Penso o sentido da fotografia para além dos objetos retratados, ou seja para além de seus referentes. Ao percorrer para além da superfície onde se mostram a aparência das coisas, várias imagens ocultas se revelam a partir daquela que nossos olhos inicialmente capturaram. Está no “invisível” tornado visível. Nas palavras de Flusser

O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. [...] o vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo relações temporais entre os elementos da imagem: um elemento é visto após o outro. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. Assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois” se torna o “antes”. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno. (FLUSSER, 1985, p.7)

Diante disso, ressaltamos que a fotografia pode ser pensada como um convite para que, direcionando nosso olhar para o invisível, sejamos capazes de participar de algo estranho, inusitado, não antes pensado.

Isso vai ao encontro, ao meu ver, do que Julia Mortimer em seu livro Arquiteturas do Olhar, nos apresenta como a noção de contemplação visual. Esta noção de origem Lacaniana, nos diz que nossos olhos ao contemplarem, ou seja, ao manterem uma relação visual com as coisas, sempre permanecem insatisfeitos e não param de buscar por aquilo que sempre se esquiva, que escorrega. Ela, a fotografia, nos lança a uma Terra outra, desconhecida.

Resultantes da vibração entre sujeito e olhar, esses novos significados sugerem que a imagem pode mostrar algo distinto do que sua estrutura visual referencia, do que ela aparenta ser, do que está ali representado. (MORTIMER, 2017 p. 122).

E o caminho a esta “terra outra”, revelada pela invisibilidade, nos aproxima do que Walter Benjamin nos apresenta como inconsciente ótico convidando a invisibilidade a fazer parte da experiência com a fotografia.

Além das leituras que me ajudam no processo que escavação já mencionado e que me propus a fazer, este ano de 2017 foi marcado por experiências um pouco diferentes das que me apresentei em nosso último encontro em Limeira. Com o plano interrompido do pós doutorado, me pus a caminho de aventuras outras que me levaram e continuam me levando e ajudando a construir no meu pensar sobre a linguagem fotográfica e a geografia. As experiências com a fotografia no Instituto de Geociências e com o NPGEOH ajudaram e me inspiraram a criar o grupo FotoGrafias, uma espécie de filhote do NPGEOH e que conta com a parceria do GHuAPo.  É um grupo ainda informal por não estar registrado na UFMG, o que pretendo fazer brevemente. No formato de Roda de Conversa recebemos convidados que trazem para o grupo suas experiências com a fotografia, além de leituras e discussões feitas a partir de documentários relacionados ao nosso tema de interesse. Nosso primeiro convidado foi um indígena da etnia Xacriabá que trabalha com Etnofotografia e estuda/pratica a fotografia como instrumento de luta política dentro e fora de sua comunidade. Em um segundo momento, agora no final do mês de outubro recebemos uma aluna do curso de Humanidades da UFVJM para conversar sobre uma Diamantina vista através de suas janelas. Em seu trabalho, a linguagem poética tanto escrita quanto fotografada se faz presente com muita intensidade. Para além das Rodas de Conversa foram realizadas três oficinas sobre a fotografia: uma na UFVJM durante a Semana de Geografia, a segunda durante a Semana de Licenciatura em Geografia da UFMG e a terceira para os membros dos grupos FotoGrafias e NPGEOH. Estas oficinas foram inspiradas na minha experiência durante o minicurso oferecido no último SEGHUM sobre Educação Geográfica Humanista e Fenomenológica. Naquele momento fiquei envolvida com uma atividade ligada à linguagem poética trabalhando com o poeta Manoel de Barros, a fotografia e a relação desta linguagem com nossa geosofia e o ensino-aprendizagem da Geografia.

Essas oficinas mostraram o potencial da fotografia para nos ajudar a pensar e a desvelar uma Geografia interior. Em um ponto alto das oficinas, entrar em contato com as fotografias levou cada um dos oficineiros ao desvelamento de uma geograficidade até a pouco, adormecida.

Diante de tudo isso, sigo meu trabalho de arqueóloga com a fotografia por meio não só das leituras, mas também e principalmente, através das experiências. Além das atividades do FotoGrafias, existe o trabalho de alguma maneira já iniciado aqui através da exposição de fotografias que trouxe para o evento deste ano e que irá se estender para além das Minas Gerais chegando também até Niterói para unir esforços e pensamentos em torno da relação entre imagem e geografia.

Referências

FLUSSER, W. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec. 1985.

MORTIMER, J. Arquiteturas do Olhar: imaginários fotográficos do espaço construído. Belo Horizonte: Editora C/Arte. 2017


**O objetivo deste texto é trazer a continuação de minha reflexão sobre a relação entre fotografia e geografia. Trata-se de uma reflexão construída coletivamente com apoio não só de diferentes autores, mas também e principalmente, neste momento, com a parceria de estudantes e membros do recém criado FotoGrafias do Instituto de Geociências da UFMG e dos grupos NPGEOH e GhuAPo. São apresentadas as principais atividades realizadas pelo FotoGrafias destacando as oficinas voltadas principalmente, para iniciar uma discussão sobre a potencialidade das fotografias para pensarmos nossas geografias menores. E para ilustrá-las, apresento em seguida alguns relatos resultantes desta experiência. Texto apresentado no SEGHUM de 2017. 

 Criação de Valéria Amorim do Carmo

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