Das avenidas centrais mineiras até o alto dos becos pernambucanos: Um diário de bordo que trança os fios do maracatu por Alice Bessa

O caminho junto da expectativa de Recife

(Escritos avulsos durante a viagem, dias 27 de abril até 29 de maio)
Próximo a Itaobim/MG (BR 116)

Subir nordeste afora no outono pode revelar paisagens secas e acinzentadas mesmo neste mês úmido (de chuvas frontais recorrentes), algo me diz que houve uma seca avassaladora, um raio de sol é o suficiente para a paisagem ficar cor de palha. Em alguns momentos me deparo com oásis verdes, são as veias férteis do sertão. Alguns paredões esbranquiçados me fazem pensar que há calcário aqui... Mas minhas expectativas de chegada devoram as paisagens reais em muitos momentos... [Bom, sobre as estadias, espero ficar na primeira semana na casa de um amigo no bairro do Recife (mancha central), o Biano; só depois quero ir para a sede, quero sentir a cidade primeira, oras! Ir aos movimentos urbanos e sentir como o maracatu se faz ali, sem influencias das pessoas da comunidade que vivem o maracatu, senão não vou conseguir ter uma visão geral e depois pontualizá-la... Mas tudo isso depende; se não tiver nada acontecendo na cidade além da Festa da Lavadeira (o que duvido muito) posso ficar pouco tempo na área central e aproveitar melhor a vivência na sede. Imagine, ficar na mesma casa que a Rainha de maracatu da Nação Estrela Brilhante, aquela que canto o nome muitas vezes em toadas [Canções e lamentos cantados por batuqueiros de maracatu]... Espero que ela seja receptiva mesmo sabendo que além de batuqueira estou indo observá-la em uma pesquisa. Qualquer coisa, volto para a casa de Biano, se não me sentir à vontade na sede. Posso visitar outras sedes também, mas acho que só se alguém me acompanhar; Na nação Estrela Brilhante me sinto mais segura, talvez por ter conhecido a Rainha Marivalda no "Encontros" (encontro de batuqueiros de maracatu do Brasil) do ano retrasado, ou por ter em meu grupo de maracatu uma forte ligação com essa nação. É uma escola do grupo. Talvez também porque o filho da Rainha, que está em SP, me convidou a passar esses dias lá, já que o quarto dele está vazio... Quando conheci a Rainha, a achei uma pessoa bem simples e de poucas palavras; lembra minha falecida avó, quando falava, eram sempre palavras poucas certeiras, coisas dessas observações aprimoradas que só uma mulher de interior de minas deve fazer. Parece que ela tinha um instinto que funcionava para família toda ...] De fato a secura do lado de lá da janela me conforta nessa manhã, o ônibus seguiu a noite e ainda tem muito a seguir até Recife, alguns afloramentos rochosos de forma arredondada dão o ar da graça por vezes na paisagem. São escuros e alinhados verticalmente com camadas esbranquiçadas ora finas ora grossas. As matas secas daqui às vezes são típicas do norte de Minas, as estradinhas de terras vistas de longe sempre me seduzem na paisagem. Serpentes vermelhas e amarelas, é incrível isso. Os mares de morros já estão bem longe de mim, agora só daqui a três semanas... Olha, município de Medina, parece um município todo de aglomerados... 
(...) Essas cercas de arame com muitos troncos, de espécies diversas, coladinhos um no outro começaram a aparecer, isso é meu indicador de Bahia, deve estar próxima... Essas cercas, sem vãos, me lembram muito a Bahia...Em Minas são espaçadas, e, quando juntas, geralmente são de bambu, mas ainda assim é raro ser sem vão. 
(...)  
Nas sacadas das casinhas, de cores quentes sobre a terra seca, muitas senhoras e crianças estão sentadas observando o movimento da BR em calmaria, nos olhares, fortes presenças; estão de fato ali. Altares de santos mostram a estrada baiana e o sol está cada vez mais forte depois de ter passado pelo anel de Vitória da Conquista estas paisagens é que me acompanham, mas estou condicionada ao ar artificial desse ônibus...
Entre vales e vales, verdes pastéis, verdes florescentes, verdes amarronzados, verdes rosados, verdes azulados.... Entre casas pontuais, às vezes vilarejos, muita simplicidade; um menino sozinho sentado bem no meio de um campo me chama a atenção. A Bahia me dá sempre essa sensação de céu maior! [Como seria Recife? Será que as alteridades urbanas são tantas assim? Bem, a cidade é tão grande e antiga que às vezes acho que não devem ser tantas diferenças doutros centros... Se bem que o olhar particularista e ao mesmo tempo universalista do geógrafo não me deixa acreditar nisso. Ouço dizer muito bem de lá, principalmente sobre a potencialidade cultural (no que seja cultura popular identitária) e é o que me chama mais atenção. Os políticos grupos de teatro, as cirandas... Bom, imagino que as alteridades brasileiras sejam bem significativas para além dessas influencias cosmopolitas... Se não me engano Marinovisk é que escreveu que a intenção é entender de dentro, e isso significa, entender como um nativo. Um mês é pouco para tanta coisa, mas como o foco é um só (mesmo se esfacelando em mil pedaços), espero fazer um bom trabalho de observação e audição... O olhar empático para o nativo é a intenção dessa imersão. As comparações virão naturalmente dessa forma de visão particularista, não vou me preocupar em procurar elas despois. Vou tentar fazê-las na hora e por aqui. Acho que meus questionamentos indicarão bem mais o meu processo cultural do que os dos nativos, mas com isso não quero também me preocupar agora. O caminho é longo, mas já passei do primeiro passo... Meu inconsciente diz: que isso nós veremos. E claro que devo me contradizer, são tantas ruelas, becos, morros e avenidas... Várias possibilidades de curvas... Então, não sei se devo ser assim tão objetiva quanto ao que será, a experiência do lugar é tão única que permite tudo e nada.]
[Estava pensando sobre as conversas-entrevistas da pesquisa aqui. Apenas uma esta direcionada que é a conversa com o historiador Walter de França Filho, filho do mestre da nação Estrela Brilhante (Walter de França). Fiquei pensando, as pessoas falam tantas coisas, e quando a gente pergunta é que falam mesmo... Falam coisas programadas, supérfluas, prontas ao que elas querem que sejam ... Então, se a intenção é observar e isso é o que será rico, não vou ficar preparando questionários antes de conhecê-las melhor... Com o tempo lá, vou perguntando e vivendo junto. Com Walter eu preparei porque já o conheço um pouco melhor. Em 2012, Serra Negra (SP) - Mesmo encontro em que conheci Dona Marivalda Rainha - conversei bastante com ele, que me mostrou um pouco dos anseios de um historiador que é parte  dessa cultura, de certa forma ele vai me orientar nessa coisa toda, como já orientou virtualmente. Com ele está a tese da Paola Ferri Santana que não encontrei nem na biblioteca virtual nem nas bibliotecas da UFMG...]
Antes de chegar ao destino essa Bahia me faz pensar que vou construir um mosaico cultural atravessando essas "fronteiras" dos diferentes olhares que me cruzam. Passei por Milagres e agora os canteiros têm muito mais artesanatos do que árvores, as pessoas que agora passam (e são passadas) trabalham nas vendas. A maioria parece usar o barro, e são bem distintas umas peças doutras... Pura arte. Agora essa estrada já está bordeada de cactos (Fotografia 1), acho que Feira de Santana chegará mais ao anoitecer... Amanhecer em Itaobim e anoitecer em Santana pode ser cansativo, mas não deixa de ser belo nem um instante, até a pobreza parece bela do lado de cá da janela. A noite caiu e a estrada pela frente encontrou muita chuva. Comecei a pensar que as previsões de um Recife chuvoso, que vi na meteorologia poderiam mesmo vingar. Depois de Feira de Santana para minha infelicidade o ônibus pegou a BR 324 e depois a BR 101... Saindo da bela BR 116... Pena não continuar nela. Uma vez na vida passei por ela, por Euclides da Cunha e foi uma das coisas mais maravilhosas que presenciei em estrada, o interior do sertão baiano. Mas esse ônibus precisa passar por Aracaju (SE) e depois por Maceió (AL)... 

Fotografia 1: Um dos Cactos observados na estrada. Foto: Alice Bessa

Enquanto isso, a escuridão (Fotografia 2) me ajuda a lembrar de um artigo de Rogério Proença Leite [que contava uma experiência antropológica em Recife. Foi um dos primeiros textos que li de olhar antropológico, numa disciplina de antropologia introdutória que fiz na PUC, quando comecei a fazer o curso de geografia. Lembro de escritos sobre a ponte principal da cidade e de uma avenida, onde os que vivem de mangue tomavam a cena nos barquinhos que passavam pelo rio Capibaribe. Coisa que lembro desse artigo é que o autor demonstrou o maracatu como se fosse o mangue-beat, ritmo que foi popularizado pelo Chico Science, quando poucos sabiam o que era maracatu ...Muitas pessoas tiveram essa visão distanciada, inclusive eu quando li o texto. Numa conversa com Mestre Walter de França, na grama da escola de música (UFMG), ele alertou sobre isso, que apesar de ter sido um portal de mundialização do maracatu, apareceu de forma modificada e muitas pessoas não sabem disso. Mas o artigo mais falava da falta de identidade dos bairros elitistas de Recife, como se eles fossem mais universalizados ou aculturados dos que os mais pobres.
Ele contava de experiências em alguns bares e dos fluxos das festas de carnaval e de São João; Não me lembro tão bem, mas acho que falava da utilização do centro de Recife que fica a leste extremo e não é um lugar de passagem normalmente. Fico contente de não estar indo em épocas carnavalescas naquela cidade, sei que nesta época tudo é voltado para o carnaval, e se assim fosse jamais veria as influencias cotidianas do maracatu na vida da comunidade, pois no carnaval os ensaios e os preparativos obviamente devem tomar conta de todo o tempo daquelas pessoas, como já ouvi muito dizer.] As lembranças desse artigo me fizeram ter mais vontade ainda de chegar, em cada km a menos sinto que aumenta isso. 
(...)

Fotografia 2: A noite caindo. Foto: Alice Bessa

Amanheceu quando passávamos por Xexéu, depois da divisa de Alagoas e Pernambuco. Enfim, terras pernambucanas e elas estão bem molhadas... Os vales brandos e baixos (100 a 250 metros) estão cheios de casas em situação de risco... Parece que vão cair em qualquer momento. Em Alagoas estava observando paisagens só de canaviais e coqueiros, coisa que, aliás, na Bahia tinha mais diversificação (milho, café, pasto)... Aqui parece que as colheitas dos canaviais já foram feitas, há baixas plantações... Isso me permite ver as ocupações dos campesinatos que estavam escondidas entre os altos canaviais alagoanos. Há pequeninas moradias e alguns alojamentos temporários, feitos de lona onde agora alguns tomavam café da manhã. As propriedades de cana daqui não parecem tão extensas elas vão e vem na paisagem entre uma cidadela e outra. Os coqueiros desapareceram ou é loucura minha? 
 

Chegada em Recife, às 10:15 do dia 29 de abril de 2014.

(Escritos da escrivaninha da casa de Biano, no Beco da Fome, entre a Rua do Hospício e a Rua Sete de setembro)

A cansativa chegada a Recife não me permitiu escrever mais no diário de bordo do ônibus, o livro de Zizec também não me deixou outra coisa além de refletir sobre os cyberespaços controlados pelo sistema e que apesar de longínquos serem da dessa esfera social aqui revelam por vezes caminhos daqui também. De Palmares até Jaboatão e a rodoviária, as cidades foram ficando cada vez mais parecidas com o centro de Recife, só que mais pobres; esgoto abertos e etc. Talvez fosse eu.
Desci na Rodoviária e descobri que para chegar ao centro teria que pegar o metro, ainda bem que a rodoviária é uma das estações de metro. Meu amigo já me aguardava na estação central. O metro estava lotado e muito quente. Eu preciso me acostumar com esse calor que molha. Notei a presença de muitos vendedores ambulantes dentro das cabines ou vagões, coisa que não acontece em Belo Horizonte, os chocolates eram muito baratos (3 suflair por 5 reais)! 
Coisa incomum em Belo Horizonte também, mas aqui todos pareciam achar normal esse preço. Algumas estações beiravam as avenidas e parecia não ter grades ou cercas, imaginei um ótimo caminho para esses ambulantes... Os bairros e casas desde que entrei neste vagão parecem de classe média e média baixa. A quantidade de esgotos abertos, roupas nos varais e aglomerados em palafitas (Fotografia 3) me deram um pouco de medo do que ainda estava por vir... Lá estava o mangue. O cheiro passava para dentro dos vagões não sei como... Ao aproximar do centro, galpões indústrias arredondados apareceram e me lembraram de algum filme, não sei ao certo se é a Febre do Rato, Baixio das Bestas, Recife Frio... Mas tenho certeza que foi filmado de dentro do metro em movimento... Bem ali. Ao ritmo tecnobrega de um pagode antigo escutado por um homem bem grande, que não gosta de usar fones de ouvido, eu embarcava pela primeira vez no centro da cidade de Recife ... Encontrei com Biano e fomos para sua casa, que fica num boêmio beco chamado Beco da Fome, depois da ponte da rua Guararapes na direção oeste da cidade. 

Fotografia 3: Rio Beribe, próximo a Olinda, uma das tantas palafitas de lá. Foto: Alice Bessa

O caminho entre o metro e a casa de Biano era bem pertinho, mas para mim qualquer distancia era quente e enorme... O Capibaribe é ponteado por essa e por mais cinco pontes, passamos em frente à ponte de ferro que Proença Leite escrevia... O cheiro de mangue, de sal e de esgoto me consumia junto ao calor latente. 
As ruas que o beco corta (Hospício e Sete de setembro) perpendiculam uma funcional avenida de fluxo intenso... A Boa Vista. Depois da ponte em direção leste ela vira Guararapes... Entendi que estava bordeando a principal avenida e senti isso também depois de chegar, o barulho e quantidade de pessoas me diriam isso mesmo se não soubesse. Um grande cinema estava entre este caminho. O Cinema São Luiz. Vi que o filme Tatuagem estava em cartaz e já pensei num feliz programa... Em Belo Horizonte não tem cinemas grandes assim hoje em dia, agora reformaram o Cine Brasil, mas ele já virou um programa caro. Biano me disse que o cinema é dois reais... Aí, que felicidade boa de chegar ...  

Fotografia 4: Cinema São Luiz visto doutro lado do Capibaribe, não neste momento de chegada... Mas numa bela noite recifense. Foto: Alice Bessa

Bom, ao chegar, deixei as malas na quitinete de Biano e fomos almoçar no mercado Boa Vista, famoso aos sábados como ele disse. É um quintal aberto com vendas de não perecíveis nas bordas e cadeiras de bares no centro do lugar. Ambiente agradável, comemos rabada com pirão, estava muito boa. Experimentei Pitú, a cachaça do nordeste... Quase passei mal de tão forte aquilo, um gosto de gordura horrível... Mas voltei rindo para casa, aproveitei para descansar. É uma terçafeira e a noite planejamos ir na Terça Negra (um movimento de cultura popular afrodescendente que acontece toda terça em Recife). Lá sabia que provavelmente encontraria algo relacionado a maracatu...
A noite conheci Bruno, amigo de Biano... Ele ajudou a montar um grupo percussivo de Afoxé em Recife (outro ritmo de cultura afrodescendente que tem gênese também nos terreiros daqui) ele abriu minha cabeça sobre a grande cultura de afoxés na cidade, disse que há um mar de grupos que se montam e desmontam todos os dias na cidade. Assim como o afoxé os grupos percussivos de maracatu da cidade se proliferam segundo Bruno. “Há inclusive um grupo percussivo de maracatu evangélico na cidade”. Percebi o quanto as culturas populares daqui são múltiplas e mais distantes do ambiente sagrado do que imaginava. Talvez a leitura histórica do tema tenha me criado uma ilusão de sagrado, como se fosse considerado de forma mais sagrada aqui do que no resto do Brasil. Aqui apenas tem mais terreiros de candomblé de onde essas culturas saem, mas há um certo  cosmopolitismo causado pela mídia nas pessoas também , principalmente de classe média parece ser idêntica a das pessoas de Belo Horizonte. Bruno me explicou que geralmente os grupos de Afoxé são oriundos dos terreiros de umbanda e não de candomblé como os maracatus. Achei aquilo tudo interessantíssimo. Estávamos falando dos grupos percussivos e não das Nações de maracatu, e por causa disso mesmo a comparação mais direta com os grupos percussivos de BH... Aqui parecem ter cerca de 80 grupos percussionistas de maracatu pela cidade, fiquei pensando se um dia BH chegará nessa quantidade de grupos... [Seis grupos e doze anos é como se fossem mesmo um retrato de um momento de nascimento, espero conseguir caracterizar este momento então, para que depois, se evoluir a tamanha quantidade hajam melhores alternativas de respostas e primeiros caminhos dos grupos]. 
(...)
A chuva caía, mas ainda assim fomos parar na Terça Negra, o encontro de espetáculo em forma de festa dos grupos populares apresentou três grupos de coco, um grupo mais tradicional e outros, bem contemporâneos. Antes eu achava que o Coco era de forte cultura carioca, mas aqui vi que os grupos de coco também ocupam bastante o cenário cultural... Muitos jovens dançavam no pátio de São Pedro, debaixo da chuva. Quando cheguei no lugar vi a paisagem de vários shows que assisto na internet, com sons maravilhosos. 
[O grupo de Afoxé Oyalaxé de Maria Helena (Mãe de santo) por exemplo, que assisti muitas vezes gravou aquele vídeo nesse pátio e na Terça negra]. Quem estava ali? Jovens atuantes no urbano, foi o que percebi dessa ocupação cultural, só que... Era muita felicidade e qualidade sonora para um só lugar. A festa (no contexto de resistência lefebrveviano) ali estava, mas controlada pelo estado, que sedia o palco. Os meninos me disseram que antes tinha uma grande estrutura de palco e hoje o encontro acontece de forma estrutural bem reduzida. Não só este encontro, mas outros eventos e acontecimentos da cidade, como a Festa da Lavadeira e outras festas locais que não acontecem apenas nos momentos turísticos da cidade e estão sofrendo redução de incentivos. Lá no pátio nos informamos melhor sobre a Festa da Lavadeira que está para acontecer na quinta-feira, dia primeiro de maio. Parece que por mais um ano sem os incentivos estatais, ela será um ato de ocupação e resistência. As músicas, cocos, que ali tocavam lamentavam a cultura negra e afirmavam sua valorização de forma muito expressiva, as letras gritavam por igualdade e contavam também histórias locais e nacionais afrodescendentes... Aquele batuque me fez dançar muito, a chuva caía, mas meu corpo estava molhado de suor. Descobri que um dos grupos de coco era de pessoas integrantes da Nação de Maracatu Cambinda Estrela. Uma grande nação pernambucana. Lembrei-me naquele momento do quanto me abri para a percepção musical depois que comecei a tocar maracatu, e como isso aconteceu com meus amigos também... Imaginei que aqui a amplitude das consequências disso devem ser maiores, pela qualidade dos grupos isso era bem perceptivo. Comemos macaxeira e voltamos juntos sob a ponte Duarte  Coelho. Aquele alaranjado das luminárias da noite refletidos pelo capibaribe deixaram o caminho passar bem rápido... 
Estou começando a sentir a cidade tanto rica culturalmente quanto repressiva nos tempos atuais também (já que leituras do tempo histórico entregava também essa repressão). O desenvolvimentismo nordestino atual parece falar com autoridade aos grupos culturais. Espero poder observar isso melhor na resistência da Festa da Lavadeira. O grupo de afoxé de Bruno surgiu como forma de apoio a uma comunidade que havia sofrido uma chacina. O intuito era dar oficinas e ressocializar as crianças que passaram pelo trauma da chacina na comunidade. Quantos grupos de afoxé, coco, ciranda, maracatu e outros devem ter se formado assim na cidade e quantos não sobrevivem em meio às dificuldades desses tempos cada vez mais pragmáticos? Bom, prefiro pensar na expansão interestadual desses maracatus mesmo...

Dia 30 de Abril, caminhando à deriva por Recife.

Como uma pessoa picada por geografias dos espaços, estive andando a deriva por Recife esses dias. Percebendo e passando pelas pontes, pelos espaços turísticos, observando os espaços de fluxos intensos e essencialmente dando uma volta nas bordas do rio Capibaribe. No centro de Recife este rio é o causador de sete pontes, sua foz encontra com uma ilha, onde está o antigo Recife, assim necessita-se de três pontes de acesso. Do extremo leste da cidade, onde está o marco zero, até onde é a casa de Biano preciso atravessar duas pontes, só de pensar que nos primeiros tempos o rio era atravessado de barco me dá uma curiosidade tremenda nessa história... Aos poucos fui percebendo que o Capibaribe regionaliza este centro urbano, alteramse os nomes das ruas, os tipos e quantidades de fluxos e o espaço de consumo é  diversificado depois que se passa por uma ponte aqui.

Fotografia 5: Um pedaço da ponte de Boa Vista, observada da ponte Duarte Coelho.

O Recife antigo, arquitetado pelos casarões administrativos foi construído com esse intuito de administração urbana, quando Olinda (desordenadamente) ocupada crescia e necessitava de maiores estruturas... Da ponta da ilha veem-se os arrecifes ocupados por obras artísticas grandiosas de uma família que muito ouvi falar aqui em Recife, a família Brennand, detentora de grandes pedaços de terras em Pernambuco e muito famosa por ser proprietária de terras localizadas nas praias do cabo (mais próximas e frequentadas pelos nativos). Além disso, a família gere um instituto que é a réplica de um castelo medieval, onde se tem uma das mais importantes coleções de armas do mundo (o popularmente conhecido, Castelo de Brennand). Essa família possui ainda, a oeste da cidade (bairro da Várzea) outra grande propriedade onde estão obras artísticas e oficina onde os artistas da família produzem suas artes em forma de obeliscos arredondados na cidade de Recife. O mapa turístico de Recife, elaborado para a COPA que acontecerá neste ano no Brasil, não localiza as sedes das nações de maracatu, coisa que tive que descobrir depois aqui, mas tem em escala exagerada o castelo, a oficina e os obeliscos de Brennand espalhados pela cidade e didáticas para a visitação turística.
Vejo que apesar da difusão dos grupos e nações de maracatu pelo mundo, ainda assim, não há espaço ou incentivos quaisquer turísticos (promessa urbana no Brasil) ou que fortaleça essas culturas afrodescendentes de forte raiz que lutam por isso a mais de duzentos anos. Há incentivos apenas para a arte contemporânea elitizada e universalizada da cidade. [Entendo porque as nações estão enfraquecidas e enfraquecendo, algumas perto de se findarem. A descrença religiosa da sociedade contemporânea não é responsável sozinha por essas „mortes‟ culturais... Além da concorrência econômica entre uma nação e outra (através dos desfiles carnavalescos), e ainda entre os grupos percussivos e nações, decorrente desse processo de expansão a que esses grupos como instituições se encontram hoje, há acima disso um agravante ainda maior relacionado à concentração de renda e de propriedade. Arrombos estruturais de idade mais antiga do que as nações de maracatu. A liberdade da Corte Negra1 parece mesmo ser apenas uma representação muito irônica dentro do espaço das agremiações de carnaval, de resto ainda pode ser vista como uma "contracultura", no cerne da palavra e não do contexto histórico].
Ainda na ilha do Recife antigo, há um cais ao sul e um aglomerado a norte, um shopping elitista chamado Alfandega, se encontra à sudoeste da ilha, onde a Livraria Cultura. Uma boa livraria que não existe em Belo Horizonte. Há , próximo ao Shopping da Alfandega a boêmia Rua da Moeda, onde vários bares estão e onde anteriormente acontecia um encontro de batuqueiros de maracatu conhecido como Traga Vasilha. O encontro hoje acontece às sextas-feiras em uma esquina paralela a Rua da Moeda. O Recife antigo esta sendo reconstruído em vários pontos.
  
Construções seculares holandesas estavam sendo reformadas e repintadas. Escutei um boato de que este estava sendo revitalizado pela prefeitura e muito já havia sido modificado ali. O meandro do rio Capibaribe que circunda as terras conhecidas popularmente como Recife velho é onde passam importantes avenidas de comércio, onde estão as feiras populares - Feira de São José e Feira de Artesanato - e onde há intensas ocupações comerciais (Fotografia 4 e 4.1), e culturais (Pátio de São Pedro e Avenida Dantas Barretos). Passam por aqui avenidas que levam aos bairros de Boa Viagem (classe média alta e alta) e ao Pina (Classe média baixa e dois complexos/ aglomerados urbanos se concentram nos arredores deste), além de ser onde esta o metro e a estação integrada de ônibus do centro da cidade. O fluxo deste ponto é bastante intenso, sobretudo em horários de pico.
Há na cidade um notável investimento turístico e cultural, os poetas pernambucanos são reverenciados com uma obra a cada esquina da cidade. Há diversas homenagens em forma de estatuas pela cidade. O maracatu, vi estampado em camisas, bolsas e acessórios de algumas pessoas que representavam as nações a que pertenciam. Mas não eram muitas... Há na cidade um notável investimento turístico e cultural, os poetas pernambucanos são reverenciados com uma obra a cada esquina da cidade, e há diversas homenagens em forma de estatuas pela cidade. O maracatu, eu vi estampado em camisas, bolsas e acessórios de algumas pessoas que representavam as nações a que pertenciam. Mas não eram muitas... 

Fotografia 6: Feirantes na rua que leva ao Pátio de São Pedro.

Dia 01 de maio: O ato de resistência da antiga Festa da Lavadeira.

[Antes de contar como foi o evento é importante levantar um pouco dos aspectos históricos dele, a famosa, pelos nativos, Festa da Lavadeira era um encontro popular que acontecia desde a década de 80 (1987), na praia do Paiva, uma bela praia bordada por coqueiros (Fotografia 7) que fica no litoral do Cabo de Santo Agostinho, o sul de Recife. As praias do Cabo são muito frequentadas pelos pernambucanos da região metropolitana de Recife. A praia fica dentro de uma propriedade da família Brenannd. Os nativos bem contam a história de que uma estátua de uma lavadeira que havia na propriedade foi enfeitada com roupas de Iemanjá e cultuada de forma religiosa no ritualismo dessa festa que reuniu várias manifestações culturais e com o tempo foi ganhando forma de um grande evento com encontro de culturas urbanas e rurais e até incentivos da prefeitura que cedeu alguns palcos e infraestrutura. O evento era esperado de ano a ano pelos pernambucanos. Ouvi muitos comentários de que era a melhor festa de Pernambuco, pois o que acontecia era um encontro de amigos onde espetáculos escolhidos do carnaval eram repetidos em meio a natureza, de forma religiosa e sem as multidões dos turistas. A festa tinha vários ambientes e era organizada de uma forma que os participantes poderiam sentir um pouco de todos os tipos de cultura popular que há na região. O evento durava dois dias e terminava com os participantes encobertos por lama da cobertura de solo que mantém os coqueiros da praia. "Era uma festa maravilhosa" como disse Biano. Atualmente há nos arredores da praia um condomínio fechado que impossibilitou a existência da festa naquele lugar... Incialmente (2011), a festa foi transferida para a região central, porém a descaracterização foi intensa e com o tempo os incentivos da prefeitura foram diminuindo de forma que hoje há no lugar da festa um ato de resistência na Avenida Dantas Barretos].

Fotografia 7: Praia do Paiva, atrás os prédios do bairro Boa Viagem.
Havia uma tenda e um palco na estrutura da manifestação desse ano, o que não consegui informação se foi algum incentivo da prefeitura ou se foi organização dos próprios manifestantes, imagino que foi organização, pois este encontro foi divulgado de forma bem raleada e a prefeitura, segundo muitos, estava patrocinando outra festa que aconteceu no Bairro Pina. A natureza se casa com a cultura afrodescendente e indígena de forma que esta festa tinha muita representatividade a esse povo, se me senti energizada na manifestação que aconteceu da festa, fiquei imaginando se fosse a "verdadeira" festa.. 
À tarde de primeiro de maio foi à primeira tarde de céu aberto e sol escaldante que vivenciei em Recife desde que cheguei... Força da natureza? Ao aproximar da Rua Dantas Barretos, percebi que a concentração de um grupo de afoxé acontecia em forma retangular (forma da mancha de pessoas vista de cima) para um arrastão em uma tenda sob o pátio da Igreja Nossa Senhora do Carmo. O feriado contribuiu para que esse lugar de intenso fluxo ficasse em clima ameno para a manifestação com clima de festa (Fotografia 8). Na verdade não era um único grupo de afoxé e sim várias pessoas de grupos distintos, o que era possível perceber pelas camisas representativas.
Os regentes se alternavam, ora eram do grupo Oyá Alaxé, ora do afoxé Pai Xango e doutros... Os corpos seguravam atabaques, ganzás, agbês e dançavam o ritmo bem marcado do afoxé. As letras cantadas reforçavam as questões de orgulho negro e de liberdade feminina. As frases são repetidas – refletidas - a todo o momento de forma que as pessoas que assistem também podem participar replicando as canções que pertencem a essas comunidades, ora como um grito de classe, ora como poesia de tempos cotidianos. Os dançarinos do ritmo afoxé abriam os caminhos para o arrastão de forma muito bonita mas sem elegâncias na vestimenta como acontece num espetáculo carnavalesco. 

Fotografia 8: Em clima de festa da lavadeira.
 
A força cultural dos afoxés de Recife se mostraram a mim como a dos maracatus, sendo que esses são os filhos de terreiros de umbanda (exploratóriamente falando), de ritmos mais amenos do que o maracatu. Nos vídeos da Festa da Lavadeira do ano anterior, que pude ter contato na internet, o afoxé aconteceu na forma de espetáculo em um grande palco, as vestimentas eram mais elaboradas e havia as representações das entidades na forma dançante e simbólica... De um ano para outro se percebe a mudança e da falta de incentivos. A resistência popular e de manifestações culturais em forma de espetáculo se transformou em arrastões de rua.
Seguimos o arrastão que deu uma volta na Av. Dantas Barretos e entrou na Rua Nossa Senhora do Carmo (em frente ao pátio da igreja, mas em direção leste) onde havia um palco de baixa estrutura montado. Descobri ali que o nome da manifestação era "Vamos Passear?" E uma faixa com este nome, foi levantada em diversos momentos. Uma grande boneca vestida de azul passeava em meio às manifestações culturais. Uma lavadeira de pano. Ali dancei afoxé, maracatu de baque-virado, maracatu de baque-solto, grupos de coco, ciranda e bebi muito axé (bebida regional). Passamos por uma chuva de pipocas que representa uma benção para a boa saúde e limpeza de doenças segundo pessoas que me rodeavam no momento, senti uma intensa força sagrada que energizava aquele momento (Fotografia 9). 

Fotografia 9: Chuva de Pipocas.  

O maracatu se apresentou da mesma forma que o afoxé, eram pessoas de diversas nações com camisas variadas que se encontraram para tocar junto em um arrastão que começou também na Av. Dantas Barreto e depois subiu ao palco, mas não na forma de um espetáculo já que não houve a presença das cortes nem investimento interno para isso... Havia a presença de muitos integrantes da Nação Estrela Brilhante (Fotografia 10); junto a esses haviam também integrantes da Nação Aurora Africana, da Nação Almirante do Forte, da Nação Cambinda Estrela, Nação Estrela Brilhante de Igaraçu e também integrantes do grupo percussivo Traga Vasilha que se formou a partir do encontro de rua de batuqueiros de várias nações a que já foi mencionado e acredito que será melhor descrito depois. O batuque foi regido ora pelo mestre Gilmar (Estrela Brilhante de Igaraçu), ora pelo mestre Walter (Estrela Brilhante), pelo mestre Teté (Almirante do Forte) e em alguns momentos por integrantes do Traga Vasilha. No palco, batuqueiros evidenciaram ao público (que era grande) a história da Festa da Lavadeira e da repressão do sistema para o seu fim. Nesse momento entendi que essa era uma festa em memória da festa. Quando subiram ao palco o número de batuqueiros multiplicou-se, tinham batuqueiros até na rua, próximo ao palco e o som alcançou extremos da cidade e animou o público de forma que eram só risos e danças. Aparentemente a maioria dos frequentadores da festa pareciam nativos, pessoas que vivem o Recife, mas haviam alguns turistas fotografando e comprando artesanato na feira que se montou. 

Fotografia 10: Batuqueiros da Nação Estrela Brilhante no arrastão de resistência da Festa da Lavadeira.

Houve um cortejo de maracatu de baque-solto ou maracatu rural (Como a antropóloga norteamericana Katarina Real nomeou e ficou popularmente conhecido) com os coloridos caboclos de lança, suas danças e repertórios, rainhas e princesas, bonecas e até algumas crianças que seguravam ferramentas de trabalho (pás e enxadas). Os brilhantes coloridos das cabeças dos caboclos de lança corriam e se balançavam pela Av. Dantas Barretos em uma dança-combate que me impressionou muitíssimo. Pouco conheço desta manifestação, sei que os caboclos são consequências de um sincretismo indígena e africano e que esta cultura é ligada aos interiores e campesinatos. Foi uma das coisas lindas que vi na festa (Fotografia 11).
A Nação de Maracatu Porto Rico e Encanto do Pina (Onde os mestres de cada uma se ligam pelo matrimônio) não se apresentou junto as outras nações. Há nesta cultura, e é necessário comentar, uma intensa rivalidade entre as duas maiores nações da cidade de Recife: Estrela Brilhante e Porto Rico. 
Eles apresentaram o maracatu de baque virado apenas mais tarde e só pude acompanhar no palco. A intervenção não aconteceu de forma organizada , haviam muitas apresentações acontecendo ao mesmo tempo no Pátio de N. S. do Carmo, na Av. Dantas Barreto e na Rua N.S do Carmo (onde estava o palco). 

Fotografia 11: Os brilhantes caboclos de lança do maracatu de baque solto.

Ao cair da noite o grupo Bongar tocou ciranda (onde grandes rodas de danças foram formadas), coco (onde a interação da dança entre as pessoas era geral) e afoxé que estava na ponta da língua e dos pés de todos. Dancei tanto que arrebentei a alça da minha sandália. Segundo os amigos Biano e Bruno e as pessoas que conheci na festa fui ali batizada. Foi uma feliz resistência.
Observei bastante à presença do maracatu nesta festa, percebi que o público assimilava e conhecia as loas desses maracatus, coisa que não acontece em BH ainda. [Há sempre algumas reações de estranheza quando os maracatus se arrastam pelas ruas mineiras. Talvez essas reações de primeiro contato se assemelhem as dos primeiros contatos do pernambucano Mário Sette (relatado no livro Maxambombas e Maracatus,nas suas histórias em forma de diário, da cidade de Recife no início do séc. XX) nos cortejos de carnavais pernambucanos que antecedem as agremiações... 
O autor escreveu que tinha um certo medo daquele som forte e daqueles rostos cansados e negros vestindo brilhante e se impondo de forma forte pelas ruas. Lembrei-me de uma vez que estava na casa de parentes no bairro Padre Eustáquio, almoçando num sábado e o cortejo do grupo percussivo de maracatu Macaia passou pela rua, todos saíram para olhar e o primeiro comentário que ouvi foi "escuta essa bagunça de som, é dessa baderna que Alice gosta"]. 

Os dias que antecederam a estadia na sede...

[A densidade do diário de bordo me fez compactar todos aqueles escritos cotidianos e diários das duas semanas em que fiquei morando no centro de Recife para as descrições mais voltadas ao foco desta pesquisa. Claro que a construção do meu olhar na sede da nação se fez também através destes dias e da convivência com as pessoas dali, porém há detalhes de fatos densos que prefiro que fiquem no caderno do diário por enquanto. Assim a pesquisa não caminhará por todos os seus meandros construtivos. Este subtítulo do diário contará de forma resumida e nos verbos passados os fatos dos dias 2 de maio ao dia 14 de maio, quando "mudei-me" para a sede da Nação Estrela Brilhante de maracatu, no aglomerado do Alto José do Pinho, e por lá fiquei até o dia 23 de maio. Quando chegar em Alto José do Pinho voltaremos aos escritos diários. Aqui leremos uma versão resumida do diário de bordo restaurado e portanto a forma de escrita é diferente dos outros subtítulos].
Esses chuvosos dias no centro de Recife me permitiram conhecer o Traga Vasilha (encontro de batuqueiros de maracatu), Olinda (Em duas visitas, uma noturna e cultural e uma outra diária onde fiz algumas fotografias), os movimentos urbanos de ocupação organizados pelo Som Na  Rural, a ilha de Itamaracá, as praias do Cabo de Santo Agostinho, a universidade (UFPE), os Bairros de Boa Viagem e Pina, as lotadas estações integradas de alguns bairros, o batuque de maracatu da Nação Almirante do Forte, o Museu da Abolição, o Museu do Forte das Cinco Pontas, o antigo presídio que hoje é uma Feira de Artesanato, o cinema São Luiz e etc...Tentarei descrever de forma sucinta algumas dessas experiências que considero importantes para a pesquisa ...
Em uma das noites de sexta-feira fui ao Traga Vasilha, no Recife antigo, o movimento é um encontro de batuqueiros de maracatu das nações diversas que começou a existir entre os anos 1999 e 2000 todas as sextas- feiras. Em minas, ano passado (2013) um encontro semelhante a este se formou, nas sextas-feiras também, como iniciativa dos integrantes do grupo Trovão das Minas. Na praça da estação, o chamado de Tira o Queijo, reúne os batuqueiros dos grupos percussivos mineiros, geralmente as minhas sextas são findadas com esses encontros de batuques onde há uma liberdade maior musical e trocas entre os grupos. Qualquer um pode puxar a loa e batucar de forma livre, ou seja, sem precisar seguir uma regência. Da mesma forma acontece em Recife, apenas percebi que a riqueza de loas é maior e a diversidade de origem das loas (diversidade de nações) também é maior. O encontro fez com que se forma-se um grupo percussivo de maracatu em recife de mesmo nome (Traga Vasilha).
Levei meu instrumento (agbê) e participei da roda, o encontro chamou o povo para assistir, já que não é uma rua de passagem as pessoas que ali estavam (vendedores ambulantes e um certo público para o encontro) foram ali com o intuito de escutar e dançar o batuque naquela esquina de pouco fluxo e pouca luz. A rua em que acontece é paralela a famosa e boêmia Rua da Moeda, e esquina de encontro com a Rua Mariz e Barros. Conversando com Denis e Nathália (batuqueiros da Nação Estrela Brilhante) soube que antes o encontro acontecia na Rua da Moeda, e que isso chamou muitas pessoas para os bares que ficam ali. Com o tempo, os batuqueiros ganharam uma aparelhagem e passaram a ganhar água, refrigerante, cerveja e etc; mas quando souberam que os bares estavam cobrando couvert dos clientes pelo batuque não ficaram felizes. Também disseram que havia uma disputa de som com alguns bares... Como alguns conflitos haviam se formado naquele espaço o grupo resolveu mudar de esquina... Jair e Fabinho, ambos integrantes da nação Estrela Brilhante (Um é marido da rainha Marivalda e outro caixeiro) contaram que o Traga Vasilha começou de forma espontânea já que os batuqueiros se reuniam para comemorar em bares e sentiam vontade de batucar nos encontros, sendo assim, este encontro começou com um caixa e um ganzá, depois foi crescendo em roda até se formar este encontro das sextas feiras, ambos afirmaram ter participado deste início. Aos poucos a notícia se espalhou e foram chegando pessoas de várias nações para tocar de forma "livre" e espontânea no Recife Antigo.
O encontro tem a importância de ser o único encontro semanal que acontece durante todo o ano para se tocar maracatu em Recife, nesta época do na, por exemplo,, não há ensaios para os desfiles de carnaval. As nações que participam das agremiações iniciam estes ensaios em setembro e vão até o carnaval... Sendo assim esses encontros de jovens batuqueiros para tocar maracatu acontecem de forma espontânea. Ali são produzidas e transformadas muitas loas. Talvez seja a forma mais contemporânea de cultura popular do maracatu que existe em Recife hoje, ocupando a rua, respeitando o passado e fazendo junto de um jeito novo o maracatu.
Fui a Olinda na primeira vez anoite, no famoso Bar do Xinxim da Baiana, lá escutamos muito afoxé e depois partimos para o Coco da Beth. A Beth é mãe de santo de um terreiro em Olinda, comecei a perceber que os terreiros são os verdadeiros embriões e perpetuadores dessas culturas populares neste dia. Conheci muitas pessoas do Alto José do Pinho no beco onde foi o coco. A mãe Beth é muito amiga de Dona Marivalda, e talvez por isso tantos integrantes do Estrela brilhante estavam ali, ou mesmo porque este coco é realmente muito bom. A cidade de Olinda é maravilhosa, lembra Ouro Preto só que recheada de coqueiros e bordeada pelo mar. Além disso, há mais cores e becos mais estreitos entres as construções seculares do que em Ouro Preto. Do ponto mais alto de Olinda (Alto da Sé) pode-se ver todo o Recife e o azul verde do mar visto dali é coisa inexplicável, acabei voltando lá no outro dia para ver isso. Passei um dia inteiro caminhando por aquelas ruelas vazias (Fotogragia12) pela época não turística; Comi a tapioca mais gostosa de Recife e Olinda (segundo nativos que apreciam uma boa culinária) no pátio de uma Igreja Matriz em Olinda. Tapioca de Charque, difícil esquecer... 
Impossível andar pelos centros urbanos e não observar as frentes de movimentos culturais populares que tentam tornar a cidade mais humana através arte. Os movimentos e ocupações que vi acontecer no centro de Recife, além dos que já foram descritos resumem-se ao festival de cultura Canábis (encontro cultural que aconteceu depois da marcha da maconha reunindo diversos grupos artístico de qualidade contra a proibição do uso da maconha no Brasil), o Som na Rural (Movimento cultural de um grupo engajado que apoiam ocupações pela cidade levando aparelhagem de som em uma Kombi) e apresentação do novo álbum musical da Nação
de maracatu Almirante do Forte em mais uma Terça Negra.
A
ocupação de uma praça chamada Praça da Liberdade, conhecida popularmente como Praça do Diário (Perto do jornal Diário da União) é feita regularmente nas sextas feiras no centro de Recife pelo Som na Rural, como forma de protesto, já que a praça é cercada durante o período do carnaval e usada de camarote onde a população local não pode circular. Durante o restante do ano ela é ocupada principalmente por moradores de rua. [Fiquei imaginando esses pedaços de cidade onde a rua é transformada em palco e a segregação carnavalesca acontece nos espaços públicos, fazendo com que a cultura popular seja apresentada aos turistas de forma espetacular e ao mesmo tempo colabora para a segregação. Esses espetáculos cada vez menos populares não condizem com um caminho coerente para essas culturas.] A ocupação parecia, em alguns momentos, o duelo de Mc's em Belo Horizonte que acontecia debaixo do viaduto Santa Tereza, pois houve raps e duelos de "biboys" (dançarinos de rap) no encontro... Alguns batuqueiros da Nação Estrela Brilhante estavam lá e de lá seguimos para o Traga Vasilha.
 
Fotografia 12: Um pedacinho de dia calmo em Olinda.

Em mais uma presença na Terça Negra observei desta vez a apresentação do álbum gravado pela nação Almirante do Forte. Chovia bastante no momento da tocada. O pátio estava cheio, mas os jovens que ali estavam esperavam um show de reggae que aconteceria depois da apresentação. O Mestre Teté, da Nação Almirante do Forte, fez vários avisos para a comunidade sobre o lançamento, sobretudo na Festa da Lavadeira. Vi no pátio aquelas mesmas pessoas ligadas ao movimento de maracatu da cidade. Em Belo Horizonte essas apresentações costumam ser vistas pelas mesmas pessoas também: as pessoas que escutam e vivem a cultura do maracatu. O Mestre Teté é um sujeito pernambucano que sempre tenta fazer a parcimônia entre as nações. Alguns dizem que as agremiações foram fundadas pelos "brancos" para causar a rivalidade entre as nações africanas em Pernambuco. Existem as principais nações rivais e essas não podem se cruzar nem na avenida do espetáculo carnavalesco. Há vários casos de desentendimentos entre nações, e a rivalidade se é percebida nos discursos de cada um (coisas que observei no "Encontros" do ano 2012 e 2013). Nesta noite dancei muito maracatu com poucas pessoas que foram prestigiar a Nação Almirante do Forte. Fiquei pensando essas rivalidades e desencontros todos, essa forma de viver a cultura. Não sei se é um fundamentalismo, ou uma competição neoliberal.
Fui à universidade por dois motivos, primeiro para conhecer o campus e o prédio do CFCH onde estão os cursos de humanas e de geografia e depois para encontrar com Walter de França Filho que me entregou a tese da Paola Verri Santana (2006) e conversamos muito sobre este trabalho. Ao chegar no andar da geografia acabei sabendo que o professor Rui Moreira daria uma disciplina de uma semana para o mestrado em geografia, acabei conseguindo fazer matricula nessa disciplina... Passei uma semana me locomovendo até o campus antes de ir para o Alto José do Pinho, a disciplina foi muito enriquecedora e Rui falou com propriedade das ocupações do espaço brasileiro, e, sobretudo, muito sobre campesinato que era o principal foco dos mestrandos que ali estavam. Senti-me lisonjeada de poder fazer parte daquilo. Fiz algumas parcerias naquele prédio e adiei por seis dias a minha volta a Belo Horizonte.
Na semana em que estava fazendo a disciplina houve uma greve da polícia militar de Recife que transformou a cidade. Da mesma forma que na Bahia esses três dias de greve representaram saques e arrastões pela cidade. Foram dias difíceis pois tudo se fechou e até os transportes públicos funcionaram de forma reduzida... Vi uma cena impressionante de dentro do ônibus, uma família participava do arrastão, um homem carregava um fogão nas costas, uma mulher carregava um micro-ondas ou forno e uma criança carregava muitos celulares e carregadores... Aquilo foi discussão das aulas que estava frequentando...
A última coisa que fiz antes de ir para a sede foi conversar com historiador Walter de França Filho e pegar a tese para me debruçar nela. Já havia acabado de ler o livro Mitologia dos Orixás que encontrei na casa de Biano, e precisava ler algo... O encontro com o historiador, filho do mestre da Nação Estrela Brilhante desconstruiu coisas que havia construído no início dessa pesquisa... A primeira desilusão que tive é sobre a herança das loas (toadas ou canções cantadas). Acreditava que elas eram seculares e não imaginava que foram reconstruídas e transformadas com o tempo e por isso não contavam histórias tão antigas assim. A maioria das letras inclusive é recente segundo o professor  

Sede da Nação Estrela Brilhante de Maracatu

(Escritos no início da tarde do dia 18 de maio de 2014, do quarto do Príncipe da Nação)

Acho que só eu posso entender o que é estar nesse quarto azul (a cor da Nação Estrela Brilhante), em cima de uma cama com lençóis azuis e sentindo o cheiro de estar a dois dias sem tomar banho por falta de água aqui nos barracos do Alto José do Pinho... Não foi difícil chegar até aqui, fui bem orientada de que ônibus tomar. Acabei me encontrando com a Sabrina (batuqueira desta nação que conheci no Coco da Beth) que me trouxe até a escadaria da Rua Vinte e Um (Fotografia 13), onde está a sede da nação. Lugar onde vive a Rainha Marivalda. A casa de Marivalda é grande, alta e tem uma bela vista de seu terreiro, donde é possível ver o estádio do Santa Cruz e muito da cidade. Lá é casa; é sede de ensaios da nação; é onde ficam os pertences da nação e é também onde existe um salão de belezas e um ateliê de costuras carnavalescas. Quando cheguei, Geni, filha da Rainha Marivalda estava trabalhando no salão. Dona Marivalda estava costurando no quarto de costura, onde ficam as
fantasias, as bonecas (Calungas de cera, símbolos religiosos da Nação) e onde são também guardados os instrumentos dos batuqueiros da nação. Junto com ela estava Ary Clayton, costureiro da nação e filho do Pai Jorge, pai de Santo do terreiro (Centro O Ilê Omyn Ogunté), frequentado por Dona Marivalda. Este lugar é onde são feitas as obrigações de que uma Nação precisa para ser legitimada no maracatu do ponto de vista sagrado. Cheguei me apresentando e perguntando se o Janatan (Príncipe e filho dela) havia avisado lá de São Paulo da minha chegada. Ela respondeu que sim mas que ele tinha saído de casa há mais de um ano dizendo que iria vender Axé em Minas Gerais e nunca mais voltou... Rimos e logo em seguida ela me perguntou se ele estava bem...
  

Fotografia 13: Escadaria da Rua 21

Rapidamente nos entrosamos, contei a ela da pesquisa e ela aparentou achar isso normal. Percebi rapidamente que isso é comum na sede. Um grupo de estudantes do ensino médio foi fazer uma entrevista com ela logo depois e ela estava bem à vontade com isso. Logo ela foi buscar os lençóis azuis para que eu pudesse colocar na cama de Janatan, que estava com cheiro de muito tempo sem ser usada.
A Rainha Marivalda é como uma mãe para a comunidade e, sobretudo para a nação. Isso foi muito nítido nesses dias em que estou aqui... Até de mim mesma ela vem sendo uma mãe. Acorda cedo nos dias em que tenho que ir para a faculdade (fazer a disciplina do Rui), faz café, preocupa-se com minha alimentação e com os lugares por onde passo. Esses dias, andei com ela pela comunidade, fui até a casa de sua outra filha e percebi como as pessoas daqui a tratam. Durante o dia a Rainha recebe muitas visitas de pessoas da comunidade, os assuntos são variados; sobre a vida dessas pessoas; ou sobre os próximos espetáculos e viagens da nação; sobre as encomendas dos grupos de dança que ela faz costura; sobre empréstimos de dinheiro que ela faz à muitas pessoas da comunidade; ou até sobre os acontecimentos do terreiro que ela frequenta. Ela costuma passar o dia inteiro no quarto de costura com Ary Clayton (Fotografia 14). Às vezes sai para comprar tecidos ou alimentos para as festas que acontecem no terreiro do seu Pai Jorge.
Os dias em que passei na sede foram importantes para que eu entendesse que a Rainha Marivalda vive dessa instituição (Nação Estrela Brilhante de Maracatu), administrando-a e agendando viagens. Ela diz que quanto mais batuqueiros ela consegue levar para os espetáculos melhor, então, organiza todas as passagens, estadias e fica por conta desses contratos. Assim ela já viajou com a Nação para Alemanha, França, Estados Unidos (um sonho por ela realizado), vários estados brasileiros e muitos lugares aos quais ela recordou em muitos instantes aqui. Comecei a observar de perto o mercado de viagens [que já havia conversado com Walter Filho, não esquecendo de distanciar-me de forma a perceber que essas ações são o que fazem com que a cultura de certa forma sobreviva, essas junto as ligações fortes a religiosa
linhagem nagô].
Então, além da questão mercadológica a que a nação como instituição está inserida, percebi aqui o forte espiritualismo de crença afrodescendente sincretista a que estas pessoas vivem, como atuantes do Camdomblé. As Calungas Sagradas, bonecas caracterizadas nos escritos de Clarisse Kubrusly (2007), por exemplo, são encobertas por um lençol (no quarto de costuras) para que não recebam ou "visualizem" energias ruins se houverem... Não pretendo aqui entrar nas questões legitimadoras ou historiográficas das bonecas, pois Clarisse faz isso muito bem,
 mas aos que são leigos no assunto uso as palavras de Rainha Marivalda em documentários espalhados virtualmente: - As minhas bonecas falam.
As Calungas (Fotografia 15) representam cada uma delas uma entidade (entes cultuados por religiões afrodescendentes). A de vestido vermelho (ver a fotografia) Joventina ou Jovelina, representa Iansã (Deusa dos ventos e do tempo) e Herondina, representa Oxúm (A entidade Deusa das águas doces). As bonecas são levadas ao terreiro de Pai Jorge com frequência para que as obrigações sejam feitas e assim os eguns (espíritos) se apropriam delas para se comunicarem e dizerem o que querem. Kubrusly conta que são os eguns de Princesas Africanas. Não participei e acho que não participarei de momentos ou rituais em que essas Calungas fazem parte, mas ouvi muito sobre essas conversas aqui.
No quarto de Janatam encontrei dois livros que muito me dispersaram, um deles se chama Pedra da Memória, organizado por Renata Amaral, nele há a história de Pai Euclides Talabyan (da casa Fanti- Ashant no Maranhão), em que ele mesmo escreve como se iniciou na espiritualidade (popularmente: como foi feito) e se tornou um difusor dessa cultura. A história é impressionante. Uma das histórias que ele conta é que, quando os negros que foram escravizados chegaram no Brasil e foram cultuar os espíritos dos seus antepassados não estavam sozinhos pois nestas terras haviam os espíritos dos caboclos (indígenas), por isso há esse sincretismo tão forte na religião afrodescendente com a cultura indígena.
 

Fotografia 14: Rainha Marivalda e Ary Clayton costurando e fofocando no quarto de costura da sede.

Este universo a que estou imergindo para a pesquisa faz parte de uma crença de cultuação dos antepassados para além da história científica. Há muito de espiritual e ritualístico aqui. Sei o quanto é difícil que a ciência incorpore essas ideias, mas hoje vejo a ciência como uma crença também e bem por isso, essas informações e vivências tem a mim mesma relevância que os pensamentos de Sócrates ou de Milton Santos...
Pai Euclides (aquele do livro do quarto de Janatan) escreve que esteve em Recife quando a mãe de santo dele faleceu no Maranhão e as entidades daqui arranjaram para ele novos pais, um deles é o Pai Raminho; No momento de filiação o Egun (espírito ancestral) disse o nome dele - Raminho - sem que ele estivesse presente, isso no corpo de Euclides. Então foram buscar Pai Raminho às pressas para que participasse do ritual de nova filiação de Euclides.


Fotografia 15: Calungas de madeira e cera, Herondina e Joventina.

Um novo universo de linha nagô estava se ligando a Euclides, segundo ele mesmo; e assim passou a incorporar os ancestrais dessa filiação já que no Maranhão a linhagem era outra ligada aos Voduns de Mina Jeje (outra linha ancestral africana). Parece que o terreiro de Pai Raminho fica em uma antiga casa aqui de Olinda, fiquei curiosa e talvez o visite... O outro livro que encontrei aqui é Maxambombas e Maracatus, de Mario Sette, já o havia o lido em citações de Santana (2006)... Muito bom pegar esse livro em mãos e o ler aqui. Algumas coisas parecem estar mesmo encontradas com o destino da pesquisa. Nesta noite vou ao Terreiro de Pai Jorge, em uma festa de celebração ao Preto Velho. Amanhã espero ter tempo de escrever o que vai acontecerá lá. Enquanto isso, vou dar uma volta pelo Alto José do Pinho para fazer algumas fotos (Fotografias 16 e 17).

Fotografia 16 - Vista de um dos becos do Alto José do Pinho.
Fotografia 17: A menina e a boneca na rua perpendicular a escadaria da Rua 21.

O Terreiro de Pai Jorge (o Ilê Omyn Ogunté)

18 de Maio. É noite.

A festa de homenagem ao Preto Velho que aconteceu hoje foi antecedida por um ritual de obrigações ao Preto Velho e a Cabocla Jurema... 
O lugar fica bem próximo à sede em uma comunidade vizinha, na Bomba do Hemetério. Quando cheguei, haviam poucas pessoas e a casa ainda estava se preparando para recebe-las. Ajudei a picar frutas para a salada de frutas para Jurema... Coisa que não entendi muito bem no início mas fui fazendo. Logo vi que havia uma mesa com muita comida no "salão" principal e um altar com muita comida no chão. Eram as oferendas para as entidades. Tudo muito bem organizado, deixando a paisagem do lugar equilibrada. Se o prato de comida estava em um canto do chão, no outro canto também havia. Era peixe, feijão branco, arroz de Oxóssi (para Oxóssi), peixada, mungunzás, vatapás, carurus e outras comidas e especiarias. Haviam muitos objetos de barro e a maioria deles se contavam em sete. Se tinham copos, eram sete copos, se tinham velas eram sete velas. Observei que havia uns quartinhos fechados lá fora, parece que tinha um quarto para Xangô, um para Oxóssi e um para Iansã, mas não tenho certeza se são essas entidades. Esses quartos guardam as oferendas, imagens e símbolos que representam cada entidade, mas não fiquei bisbilhotando demais. Vi alguns galos e coelhos em gaiolas, uma gaiola fixa com muitas galinhas dentro. Da cozinha vinha um cheiro muito bom. Ary Clayton me pediu para levar refrigerantes e eu levei, estava preparada para uma festa. Ao começar, primeiro sentamos em roda no chão e começamos a cantar, os cantos falavam muito das entidades e cantamos muito para Jurema (Uma entidade Cabocla). Um quarto a direita do altar com muitas bebidas (que para mim era o quarto de Jurema) foi aberto e assim Pai Jorge foi pra lá. Continuamos cantando e de repente ele começou a pedir para levarem o sangue... Cada hora levavam um animal lá dentro, eram ratos, galos e coelhos... Depois eles saiam de lá levados mortos, parece que eram cortados o pescoço. Não me aproximei do quarto para ver como as outras pessoas porque não gosto de ver essas coisas... Enquanto sacrificavam os animais, uma das mães da casa saiu do quarto com o Egun da Cabocla Jurema, ela se lambuzava das frutas picadas e de mel, se banhou disso até os cabelos, passou mel na mão de todos e deu a todos frutas para comer (deviam ter umas vinte pessoas na casa). Eu não estava entendendo nada que ela dizia, mas acho que ela estava feliz pois sorria muito. No quarto haviam entrado duas mulheres de branco também que estavam ajudando a sacrificar os animais. Haviam pessoas que estavam cuidando da Cabocla Jurema pelo salão (acho que essas são as pessoas com funções de Ekedes de que Dona Marivalda havia me falado, pessoas que não incorporam entidades, apenas cuidam delas). Bem depois, quando acabou isso, cantamos mais e as pessoas saíram bem molhadas de sangue do quarto. Foram todas tomar um banho e a Cabocla Jurema se foi...
Nesse momento três cadeiras em frente ao altar foram colocadas e dois pratos foram preenchidos de comidas variadas. Por cima colocaram o sangue fresco dos animais. Cercaram cada um dos pratos
 com sete copos e sete colheres, tudo de barro. Haviam também sete velas e sete pratos vazios que cercavam esses pratos. Além disso no altar tinham outros alimentos, peixes inteiros, arroz etc... Duas mulheres passaram defumando o local e as mães da casa sentaram nas cadeiras laterais e Pai Jorge sentou na cadeira do Meio. Havia sete cachimbos no altar, mas também tinha um para cada um dos que estavam nas cadeiras... Cantamos muito, cantamos para o Preto Velho e de repente lá estava ele, nos três corpos. Os cachimbos de cada um estavam acessos e as pessoas começaram a ir de uma a uma se „‟consultar‟‟ com cada um deles. Fui também e fui abençoada, limpada e indagada sobre algumas questões intimas. Depois cantamos mais e eles foram embora... Enfim pude comer. Eu estava faminta. Não sei bem o que senti ali, acho que estava com medo misturado com nojo do sangue... Mas fato é que saí de lá me sentindo mais leve e gostei das conversas que tive com Preto Velho.
Bom, na verdade, fui mais cedo para conversar com Pai Jorge, queria que ele jogasse os búzios para mim, mas não me senti muito à vontade para isso, ele estava atarefado e eu senti que talvez não fosse o momento. A Rainha Marivalda não foi à festa, de início ela iria, mas deve ter se atrasado no batizado da filha de umas das catirinas (dançarinas) da nação. 
Cheguei aqui e a casa está vazia. O jeito foi vir escrever para chamar o sono. A noite está muito bela aqui de cima (Fotografia 18). 

Fotografia 18: Visão do terreiro da sede naquela noite.

Terreiro de Tata Raminho de Oxóssi (Oxum Opará)

Dia 21 de maio.

As coisas vêm acontecendo aqui de forma inacreditável. Na manhã desta quarta-feira Rainha Marivalda recebeu a visita de Valdir (já foi rei da nação e trabalha fazendo estandartes e outras artes). Quando percebi já estávamos conversando sobre estandartes, simbolismos e outros assuntos... Eu precisava ir ao supermercado e ele acabou indo comigo. Disse a ele que fui ao terreiro de Pai Jorge e Valdir me disse que é filho do Pai de Pai Jorge. Até aí tudo bem, mas então continuou dizendo que o pai dele é também pai doutros pais de santo da região, tanto é que é chamado de Tata Raminho e não de pai... Na hora que ele disse eu dei um pulo e me arrepiei. Tata Raminho é o pai de Euclides, do livro de Janatan, que havia lido poucos dias atrás... Falei pra ele da minha curiosidade em conhecer o Terreiro porque fiquei impressionada com a história espiritual da vida de Euclides, um de seus filhos. Levei as compras para a sede e acabamos indo parar lá no Terreiro naquele mesmo momento... Fomos escondidos da Rainha Marivalda... Ela por frequentar outro Terreiro poderia ficar chateada.
A grandiosidade do terreiro me lembrou das imagens da casa Fanti - Ashanti de Euclides (visualizadas no livro Pedra Memória). Era uma casa enorme e lembrava uma igreja. Aliás, tanto o Terreiro de Pai Jorge quanto o de Tata Raminho, pareciam igrejas mas ficavam por detrás de altos muros, como se tivessem que ser as escondidas. O terreiro de Pai Jorge ficava bem nos fundos de uma alta residência e era um salão pequeno. O de Tata Raminho era cercado por esses muros bem altos em uma rua sem asfalto de Olinda... Os quartos das entidades eram bem grandes e variados. É provável que para todas as entidades que trabalham no Terreiro.
Inclusive havia o quarto de Xangô de linha nagô e Xangô de linha jêje [linhagens ancestrais distintas para a entidade das pedreiras]. O quarto da Jurema (entidade cabocla) ficava do lado de fora da casa (Fotografia 19). No salão principal ficavam os outros (Fotografia 20). Havia algumas pessoas no lugar, mas hoje não haveria rituais ou celebrações. Apenas durante a noite, era tarde início da tarde quando cheguei... Essas pessoas almoçavam em uma mesa bem no meio do salão. Valdir disse que lá tem quartos que hospedam as pessoas de longe, e que o raio de influência do terreiro é enorme. - Tata Raminho tem filhos até na Grécia, disse Valdir. Quando me encontrei com Tata Raminho logo fui dizendo que precisava jogar os búzios, ele disse que o preço cobrado é de cem reais... Quase que não fui por isso, mas pensei em todos os problemas de se sustentar um Terreiro... Coisa que Euclides Talabyan conta no livro...
Fomos para uma salinha do lado de fora do salão que eu deveria ter tirado fotos dela... Havia uma mesinha no meio com quartzos de várias cores, em forma de um círculo, em que a roda era um degrau mais abaixo do que nível da mesa, ele colocou um chapeuzinho de pano branco me olhou nos olhos pegou os búzios, encostou a mãos em minha testa e jogou os búzios na mesa, a partir daí foi me falando muitas coisas. Eu fiquei muito impressionada com aquilo tudo porque ele disse coisas que realmente estão acontecendo na minha vida. Usou nomes que ele jamais poderia saber de fato que existem... Saí de lá tremula...
Fotografia 19: O quarto de Jurema.

Fotografia 20: Parte do salão principal e as portas dos quartos das entidades. 

Os últimos dias na Sede

[Os últimos dias na sede foram intensos e não permitiram que escrevesse no diário. Precisava arrumar minhas coisas para a partida, comprar instrumentos musicais e até a passagem de volta. Fui também na universidade algumas vezes para fazer um trabalho da disciplina de Rui Moreira. No último dia conversei muito com a Rainha Marivalda sobre os grupos percussivos espalhados pelo mundo. Ela revelou uma certa aversão por muitos grupos. Segundo ela, as coisas sempre são repassadas de forma aberta a todos pela na nação e não existe (por parte desses grupos) nem um compromisso com a religião e nem um retorno qualquer para a comunidade. Apenas
aprendem o que querem aprender e partem para seus destinos, virando muitas vezes concorrentes mercadológicos para a nação. A despedida foi muito boa, Walter de França Filho foi até a sede no último dia (Fotografia 21), conversamos sobre as minhas impressões da imersão cultural, assuntos que estavam fervilhando na minha cabeça]. 

Fotografia 21: Despedida: Walter de França Filho, eu, Rainha Marivalda e João

"Os acontecimentos mais ricos ocorrem em nós muito antes que a alma se aperceba deles. E, quando começamos a abrir os olhos para o visível, há muito que já estávamos aderentes ao invisível." D'Annunzio (Contemplation de la mort, p.19)

*Esse trabalho é um extrato do trabalho de conclusão de curso de autoria da geógrafa Alice Bessa, intitulado: "UM DIÁRIO DE BORDO QUE TRANÇA OS FIOS DO MARACATU: REFLEXÕES DESCRITAS DAS AVENIDAS CENTRAIS MINEIRAS ATÉ O ALTO DOS BECOS PERNAMBUCANOS", apresentada no curso de Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do grau de Geógrafa. Uma abordagemde pesquisa de matriz cultural e humanista, orientada pela Professora Dr. Maria Luiza Grossi.

 

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