Caminhos amazônicos: imaginar, olhar, sentir

Na coluna "nossa geografia humanista" de hoje, apresento a dissertação de mestrado da geógrafa Juliana Martins Fonseca, intitulada "Paisagens e imagens amazônicas: caminhos do imaginar, olhar e sentir", publicada em setembro de 2016 na Universidade Federal de Minas Gerais. 


Igarapé - Fotografia de Juliana Martins Fonseca, 2013

O trecho abaixo é um extrato dessa dissertação (pg 78-80):

Tinha muito pau memo. No meu caso eu pegava um tanto dessa seringa e ia só picando eles. Só picando assim, eu pegava o motó e ia cortando sem derrubá nenhum. Aí eu vinha aqui e achava um pauzão grosso e jogava em cima e um ia levando o outro para cair tudo. E as ezes tinha hora que você cortava um pau aqui e tinha um cipó lá que puxava um galho laaaá de trás, entendeu? E aí você tinha que dá teu jeito. Pra sair de fora e para aquilo não cair em cima. E nisso eu matei um filho meu (silêncio). Bom eu digo que matei assim... (silêncio). A Lena estava gestante de sete meises e ela que era a minha melosa. Melosa era aquela que levava gasolina, machado, óleo para abastecé o moto. E aí eu peguei deiz alqueire lá em baixo na beira do rio São Pedro, descendo aqui. Com um cunhado meu. No último dia que tava para acabá aí eu fui de tarde e piquei um monte de pau. Só que não derrubei sabe? Piquei aquilo... De um lado eu fui passando e cortando... E eu cortava para cá e ia para de lá. Porque se eu fosse para cá e ele caísse eles iam empurrá para cima de mim. Eu tinha que pegá de lá para cá e vir saindo. Picando tudo e saí para lá. Porque se viesse para cá as árvore pegava e ficava com nóis na terra. Entendeu né? Para não corré risco né. O risco que tinha era assim: na hora que ocê picava e os cipó em cima que levava tudo os pau e pegava os outros e vinha tudo junto. Como um grupão de gente (risos) E aí eles vinha para pegá e quebrá a gente. Aí um dia eu fiz uma picassona e quando foi de noite deu um vento (silêncio) que derrubó quase tudo. Mas ficou uns pau lá e eu tava acabando! O último tanque já do motossera. Já acabando já a derrubada (silêncio). E aí acabou o pretóleo e eu disse “Lena vem cá! Traz o pretóleo”. E a Lena trouxe. Eu abasteci o moto. E aí aqueles pau que tava picado, eu achei que não tava não. E eu tinha derrubado uma figueira, grandona, um montão de pau... e aí quando eu tava derrubando (silêncio). E ela lá no meio da derrubada sentada na paineira. E ela  já tava levantando e arrumando pra saí já, que já tava acabando memo. E ela me falou “vou por cima da paineira!” E eu disse “vai!” (silêncio). E aí ela subiu e deu um vento. E aqueles pau virou pro lado dela. Aqueles que eu tinha picado e eu achei que não tinha picado. Diz ela que quando ela ia em cima assim ela viu que fechou o sol. E começou aquele estalo e ela olho aí ela viu que tampó o sol. E os pau veio puxando. (silêncio) E ela ficou em cima da paineira. Paineira que já estava deitada e ela escorregó. E caiu (silêncio). E aquele monte de pau quase morto veio vivo em cima. Ela caiu dentro de um buraco. Parece que foi por Deus! (silêncio) Um buraco que cobriu ela. Um giracatiati... um pau que tinha aprodecido e ficava aquele buracão no chão. (silêncio) E ela caiu dentro e veio aqueles pau e vruuuu em cima. E tampo... tudo... E eu continuei derrubando. Nem percebi! Daí a pouco veio na cabeça: e a Lena? E aí eu vi que o pau tinha caído né? E eu “LENA!” “LENA!” (fala alta) E aí eu fiquei né. Matei minha muié (silêncio). E aí eu larguei aquele motó e fui correndo. Pra aquele lado que os pau tinha caído. E eu “LENA!” “LENA!” (fala alta) E ela: “Oi”. (silêncio) E ela lá dentro do buraco tampada de pau. Assim... aquelas gaiada sabe? Diz ela assim, diz ela que acha que foi quando os gaió veio naquele ventão. Disse ela que acabou o fôlego dela. E veio tomando o ar todo porque veio fazendo vruuuuuuuu (imitando o som do vento). E veio tudo em cima e de uma vez. Diz ela que puxava um fôlego assim e não vinha. E ela achou que tinha morrido. Mas aí ela viu eu gritá e pensou morri não! (risos) Aí ela gritou vem vê onde é que eu tô! E eu tive que ia lá de baixo e buscá o motossera e cortá para tirá ela de lá. Poqué ela tava tampada... em cima do buraco. (silêncio). Aí eu falei vamô embora (fala com raiva). “E ela não! não! vai acabá primero!” E eu “não! vamo embora!”Pra cê vê estou o galão de gasolina, os pau quebro, quebró o cabo do machado que tava com ele. Não morreu por Deus memo! Né? Porque não era dia que nem fala. (silêncio) E eu disse amanhã eu venho acabá. No otro dia o nenê não mexeu mais (silêncio). Tava para sete, oito meise. E ela não ficava porque tinha medo de eu ir sozinho e acontecer alguma coisa e eu morré para lá e ela não vê. (risos) Aí... o nenê não mexeu não... mais depois do dia do pau. Acho que o susto foi tão grande e aquele ventão em cima. E eu: “mas Lena será?” (silêncio) E então nos fomos para Cacoal. Chegamó no médico... o médico examinó e falou tá morto (silêncio)Ficó... parece que doze dia sem... na barriga morto. E aí remédio. E ela ficou internada né? Mandaram buscá remédio em Porto Velho para aplicar nela pra... pra abortá (silêncio). E eles deram o remedio e ela sentiu muita dó e apagó. Quando ela acordó tinha quatro médico em volta e duas enfermeira abanando. E ela falou que não aguentava mais a dó e levantou e teve o filho no chão memo. Morto né? Já tava morto (silêncio). Eu falo com ela que noís temo muita coisa ainda para fazé para os outro, porque o tanto que a gente já sofreu! (risos) Mais assim, mas assim... eu fico sentido. Porque eu achei que não tinha cortado aqueles pau. Mas tava cortado. Mas é difícil... Eu fui mexe na terra e aí acabo ela cobrando eu...




Casa adaptada ao ritmo das águas no Rio Machado - Fotografia de Juliana Martins Fonseca, 2011 


Ao realizar os trabalhos de campo e ao som de muitas risadas e lágrimas, me surpreendi com uma nova Amazônia, oriunda das experiências e do olhar dos homens e mulheres envolvidos com a colonização. Nas conversas, acompanhadas por um café ou suco de cupuaçu, os entrevistados revelavam seus primeiros anos de trabalho árduo, suas surpresas e dificuldades de adaptação com a terra, que por seu turno, significava a oportunidade de mudança de vida. Inicialmente essas conversas apresentavam histórias e casos carregados de sentimentos de medo e dúvidas sobre a nova realidade que se apresentava. As angústias e medos eram oriundos principalmente devido à ausência de informações sobre a área e aos mitos e histórias sobre povos canibais, doenças desconhecidas e animais pré-históricos espalhados por alguns vizinhos sobre a floresta e os índios.
Ao alongar as conversas observei que os primeiros contatos com a fauna, flora e as comunidades que já residiam em Rondônia significou para esses agricultores uma transformação acerca da percepção sobre o estado. Essa parte da Amazônia não era vazia e tampouco selvagem. Ela era ocupada por homens, segundo a descrição dos entrevistados, que usavam poucas roupas, tinham a pele lisa e os cabelos pretos e brilhantes; homens que moravam perto demais dos rios, mas que tinham o controle sobre as águas e homens que retiravam da árvore um leite que os tornava uma réplica do fazendeiro de gado do sul.
As paisagens destruídas começam a ser questionadas a partir do crescimento do movimento ambiental. A Amazônia passou a ser vista, em grande parte, como área a ser preservada na medida em que o novo modo de produzir a valoriza como capital de realização atual ou futura. Os projetos preservacionistas e conservacionistas possuem duas linhas: por um lado temos os de legítima consciência ecológica, que visam preservar o mundo natural como estoque de vida, e de outro os de geopolítica ecológica, que visam preservá-la como reserva de valor. Esses projetos buscam associar a conservação da natureza com os conhecimentos tradicionais e manejo dos recursos naturais, propiciando o reavivamento do sentimento de pertencer a um ecossistema.
 

As pessoas idealizam a Amazônia como um emaranhado de florestas e rios. O mundo precisa dela para respirar. Os rios são um presente de São Pedro e a água vai valer mais do que petróleo, vamos usar, mas também vamos salvar a floresta! A Amazônia desempenha um papel estabilizador importante, porque é a maior área florestal contínua do planeta,que incansavelmente tem o trabalho de retirar o gás carbônico da atmosfera. Essas imagens reforçam a ideia da floresta como pulmão do mundo. Discursos ambientalistas e ecológicos retratam uma realidade mascarada em uma identidade regional que não leva em consideração as ambiguidades e antagonismos sociais.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito para obtenção de título de Mestre em Geografia.  PAISAGENS E IMAGENS AMAZÔNICAS: OS CAMINHOS DO IMAGINAR, OLHAR E SENTIR. Juliana Martins Fonseca. – Belo Horizonte, 2016.

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